Ricardo Salgado perde e acusa: “Aplicam coimas de milhões como se fossem bagatelas”

O Tribunal da Relação confirmou a sentença da primeira instância que condenou o antigo presidente do BES ao pagamento de uma coima de 3,7 milhões de euros. Ricardo Salgado vai recorrer para o Constitucional.

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O caminho para Ricardo Salgado está mais difícil Enric Vives-Rubio

O caminho para Ricardo Salgado se poder opor a eventuais condenações por insolvência culposa que venham a ser proferidas no quadro do processo de liquidação do BES está mais difícil. E o obstáculo foi colocado pelo Tribunal da Relação de Lisboa, que já na semana passada, a 2 de Maio, veio confirmar a sentença proferida pelo tribunal de primeira instância, de Santarém, que tinha acompanhado a decisão do Banco de Portugal (BdP) de aplicar uma sanção ao ex-presidente do BES e ao seu ex-administrador financeiro (CFO), Amílcar Morais Pires, por actos de gestão ruinosa no quadro das funções que desempenharam na instituição financeira, agora denominada Novo Banco.

Falta agora que a confirmação da decisão do BdP pelo Tribunal da Relação de Lisboa transite em julgado. Aos arguidos resta o recurso para o Tribunal Constitucional, mas apenas sobre as questões de constitucionalidade suscitadas ao longo do processo que começou a correr nos tribunais no Verão de 2016. E depois de o BdP ter avançado com várias contra-ordenações, por actos ruinosos à frente do BES, visando, nomeadamente, Ricardo Salgado e Amílcar Morais Pires a quem aplicou coimas de quatro milhões de euros e de 600 mil euros, respectivamente.

Na sequência, Salgado e Morais Pires impugnaram a decisão do supervisor junto do Tribunal de Santarém, que iniciou os seus trabalhos a 6 de Março de 2017, tendo proferido a sua sentença a 30 de Abril do ano seguinte, em que deu razão ao BdP (por ter ficado “globalmente demonstrada a matéria factual” contida na decisão do BdP). Mas acabou a corrigir o valor das coimas reclamadas pelo supervisor: a multa aplicada a Salgado foi reduzida de quatro milhões de euros para 3,7 milhões, e a de Morais Pires caiu de 600 mil euros para 350 mil euros.

A multa que é pedida ao ex-banqueiro ficou a meio caminho entre o valor atribuído pelo Ministério Público, de 3,5 milhões de euros, e o montante exigido pelo supervisor.

Os dois principais visados no processo de gestão ruinosa do BES recorreram para o Tribunal da Relação de Lisboa, que lhes negou os recursos. E voltou a confirmar a sentença proferida na primeira instância. A importância desta decisão é grande. E por duas razões: é a primeira vez que há uma condenação confirmada por actos de gestão ruinosa; a sentença do Tribunal da Relação, depois de transitada em julgado, vai dar gás ao processo que está a correr movido pela comissão liquidatária (CL) do antigo BES, que considera ter havido uma insolvência culposa. Ao fazer a prova de que houve gestão ruinosa por parte dos ex-administradores executivos, com foco para Ricardo Salgado, a CL fica com caminho aberto para conseguir valer a sua tese de que houve insolvência culposa no BES. Neste contexto, também pode abrir espaço para os pedidos de indemnizações que estão na calha. 

O antigo banqueiro fica ainda inibido de exercer cargos no sector bancário por oito anos (o BdP pedira dez anos).

Em causa está uma vaga de primeiras condenações do BdP envolvendo as investigações ao BES, e que estão relacionadas, entre outras matérias, com a má avaliação de risco do papel comercial da Espírito Santo International (ESI, a holding cabeça do Grupo Espírito Santo que detinha o BES). No período crítico, o BES colocou junto dos seus clientes de retalho dívida da sociedade (que estava já com problemas de sustentabilidade financeira). Com sede no Luxemburgo, a ESI tem a correr um pedido de insolvência. Este processo arrancou com 18 arguidos, dois quais três colectivos, e 13 alvo de coimas.

Ricardo Salgado já reagiu, através de fonte oficial: “Estamos a analisar a decisão e iremos reagir através dos meios processuais aplicáveis até ao recurso para o Tribunal Constitucional. Trata-se de um Acórdão que, essencialmente, tratou de questões de direito, pois nos processos de contra-ordenação, regra geral, os tribunais superiores não podem julgar os factos. Lamentavelmente, em Portugal, continua-se a tratar processos em que se aplicam coimas de milhões como se fossem bagatelas, obstando-se a um verdadeiro controlo do fundo das decisões das entidades administrativas na origem do processo, afectando gravemente direitos fundamentais dos arguidos e prejudicando a realização da Justiça.”

Actos dolosos de gestão ruinosa

Salgado é acusado, entre outros pontos, de não ter implementado no BES um sistema de informação e comunicação correcto, de não ter adoptado um sistema de gestão de riscos sólido, designadamente, para gerir correctamente a actividade de colocação de produtos emitidos por terceiros, e por actos dolosos de gestão ruinosa que prejudicaram os depositantes, os investidores e credores. E ainda por prestação de falsas informações às autoridades e violação das regras sobre conflitos de interesses. O Tribunal da Relação de Lisboa conclui mesmo que Ricardo Salgado actuou com consciência de que estava a prestar informação falsa ao BdP com o propósito de distorcer a realidade da ESI e de, assim, prosseguir interesses pessoais em detrimento dos do BES, dos depositantes, dos investidores e dos credores. E deduz que não foi feita uma gestão sã e prudente do banco, validando assim a condenação dos arguidos pela prática de actos dolosos de gestão ruinosa.

A tese do BdP é em parte sustentada no seguinte facto: a partir de 2009, Salgado requereu continuadamente a introdução de ajustes à contabilidade da ESI para conseguir reduzir artificialmente o passivo da sociedade, colocando nos clientes do banco títulos de dívida emitidos pela holding.

Apesar de conhecer as dificuldades financeiras e patrimoniais da sociedade (que, por esse motivo, dificilmente poderia remunerar e pagar a dívida emitida), Salgado deixou sair informação que não reflectia a verdadeira situação financeira e contabilística da ESI, e autorizou a venda de títulos através da rede comercial do BES. As autoridades concluem que o banqueiro actuou de forma ruinosa em prejuízo da instituição bancária, pois sujeitou-a a um significativo risco reputacional, susceptível de prejudicar a sua liquidez.

No que respeita ao ex-CFO do BES, mencionado nos processo judiciais em termos mais suaves do que o ex-presidente, o tribunal considera que este teve responsabilidades, dado que antes de assumir funções na comissão executiva era o coordenador do Departamento Financeiro, de Mercados e Estudos (DFME), com uma área própria de avaliação de risco, o que exigia que tivesse actuado de forma diligente. Morais Pires é ilibado de ter beneficiado, directa ou indirectamente, com a sua conduta. O tribunal reduziu-lhe o período de inibição de gestão no sector financeiro para um ano, mas manteve a condenação pela prática dolosa das contra-ordenações de omissão de implementação de um sistema de gestão de riscos sólido, eficaz e consistente quanto à actividade de colocação de produtos emitidos por terceiros.

Muita investigação, poucas condenações

Quase cinco anos depois de o BES ter colapsado na praça pública (a 3 de Agosto de 2014), o nome do antigo banqueiro mantém-se no epicentro de vários dossiês polémicos ou de âmbito contra-ordenacional ou judicial. E apenas um, o que acaba de ser alvo de confirmação por parte do Tribunal da Relação, pode ficar fechado se os arguidos não recorrerem para o Tribunal Constitucional.

O BdP tem em curso outras acusações relacionadas com as operações fraudulentas do Eurofin (Salgado e Morais Pires terão supostamente movimentado três mil milhões de euros para fora do banco em benefício do GES, através de um esquema de recompra de obrigações próprias), encontrando-se a aguardar marcação de julgamento a impugnação das sanções que foram aplicadas no processo do BESA (Salgado, Morais Pires e Rui Silveira foram condenados pelo BdP por falhas de ‘compliance’, de auditoria interna, de gestão de riscos, de informação de gestão e de reporte de controlo interno em relação à filial angolana).

A par das iniciativas do BdP, o Ministério Público colocou Salgado dentro dos processos Monte Branco (eventual fuga ao fisco), Operação Marquês (alegada corrupção e suposto ter sido corruptor de José Sócrates) e EDP (pagamento de subornos). Na Operação Marquês, o banqueiro foi formalmente acusado pelo MP por prática de crimes com condenações a penas máximas entre os cinco e 12 anos.

Especificamente sobre o caso BES, no final de Março, a Procuradoria-Geral da República (PGR) fez um balanço em que explicou que a investigação abrange 41 arguidos, estando apreendidos à guarda do processo cerca de 120 milhões de euros em numerário e aplicações financeiras. Ricardo Salgado, antigo presidente do banco, é o arguido mais conhecido do inquérito que investiga crimes de burla qualificada, falsificação de documentos, corrupção activa e passiva no sector privado, corrupção com prejuízo no comércio internacional, branqueamento de capitais, infidelidade e associação criminosa.

Nessa ocasião, a PGR revelou que “desde Maio de 2016, [que] as autoridades portuguesas aguardam o cumprimento de cartas rogatórias enviadas à Suíça no contexto das investigações conjuntas, incluindo o produto de buscas e audições requeridas, que se têm por determinantes para a prolação do despacho que porá termo ao processo”, lê-se no comunicado. E acrescenta-se: “As investigações criminais instauradas na Suíça, em cujo contexto foram congelados valores significativos, depositados em contas bancárias, não estão findas à data de hoje.”

Por seu turno, há cerca de dois meses, Ricardo Salgado reapareceu mediaticamente e deu uma entrevista à TSF para se defender, repetindo os argumentos que tem vindo a usar para justificar a queda do BES. “Havia outras soluções para salvar o Banco Espírito Santo. Uma das coisas que me leva a pensar que não houve vontade política foi o facto de o senhor governador e o Banco de Portugal terem recusado três hipóteses de recapitalização do banco”, refere Salgado, acrescentando que, depois de terem começado fugas de depósitos e da “quebra brutal de confiança”, só havia uma forma de o corrigir: “injectar confiança”. Mas, defende, “havia uma pressão enorme para uma solução que acabasse com o Banco Espírito Santo”.

E sobre os efeitos da acção que está agora na mira do Tribunal da Relação – venda de dívida da ESI – Salgado justificou-se: “não fui eu que lancei a resolução. [No tempo da] minha acção no BES não havia resolução em pé ainda. Portanto, não fui eu que causei os lesados. Os lesados foram causados pela resolução”. E acrescentou: “Penso todos os dias nos lesados. Todos os dias. E sofro com isso”.

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