Silêncio de ouro
Marcelo sabia que a hipótese de demissão do Governo existia, e custa a crer que não tenha falado com o primeiro-ministro sobre esse cenário.
Marcelo Rebelo de Sousa jogou, nos últimos dias, o trunfo que lhe faltava: o silêncio. Não se pense, no entanto, que o Presidente da República está distraído, distante ou que foi apanhado de surpresa por uma crise política que não desejava e que, inevitavelmente, o obrigaria a vir a jogo e decidir o seu desfecho. Pois a ele lhe caberia (ou caberá) sempre decidir como terminaria essa crise.
A primeira decisão será sempre sobre a promulgação do diploma, o veto ou o envio para o Tribunal Constitucional avaliar alguma eventual inconstitucionalidade. Qualquer uma destas decisões teria (terá) consequências políticas.
Depois, o Presidente teria de decidir se, perante a demissão do primeiro-ministro, a aceitava ou não. Nada o obriga a aceitar a demissão. Em situações bem mais difíceis para o país e para o Governo, Cavaco Silva recusou, por mais de uma vez, o pedido de demissão de Pedro Passos Coelho, como conta o próprio ex-Presidente no seu livro Quinta-feira e outros dias. E mesmo que aceitasse, podia manter o Governo em funções até à data marcada para as eleições, 6 de Outubro, não dissolvendo o Parlamento.
A cinco meses de eleições legislativas e a pouco mais de dois meses e meio do encerramento da Assembleia da República, não se perceberia que motivos urgentes obrigariam à dissolução do Parlamento e a convocação de eleições antecipadas. Podia fazer todo o sentido para o PS, mas é de duvidar que o Presidente lhe fizesse a vontade.
O Presidente, ciente do poder que lhe cabia no desfecho desta crise, remeteu-se ao silêncio. Ainda bem. Mas isso não significa que tivesse sido apanhado de surpresa. Marcelo Rebelo de Sousa partiu para a China com uma ameaça velada – afirmada e desmentida por fontes do Governo – de que o primeiro-ministro se podia demitir caso houvesse uma coligação negativa no Parlamento para aprovar uma lei que contrariasse a vontade expressa do Governo de apenas descongelar as carreiras dos professores, com efeitos para o futuro, sem que isso implicasse a recuperação do tempo de serviço perdido desde finais de 2010.
Sabia, portanto, que essa hipótese existia, e custa a crer que não tenha falado com o primeiro-ministro sobre esse cenário. Não sabemos que conversas tiveram Marcelo e António Costa, antes e depois do anúncio do primeiro-ministro. Também não sabemos que conversas teve o Presidente durante o fim-de-semana em que o impasse parecia manter-se. Sabemos apenas, e para já, que os partidos da direita deram o dito por não dito e que a crise política, afinal, parece já não ter motivos para acontecer.
E sabemos também que Marcelo Rebelo de Sousa já aprendeu o valor do silêncio. Fez muito bem, ainda que seja possível imaginar que está a lutar contra a sua própria natureza. Marcelo quer ser um Presidente pedagogo, sempre o disse, e explicar aos portugueses aquilo que está a acontecer no tabuleiro político. O silêncio, no entanto, também é uma forma de intervir, e não menos importante – desde que não seja a regra.
Agora que a “crise política” está prestes a dissipar-se de vez, começa a aproximar-se o momento de se pronunciar sobre o que aconteceu. Porque o que não se compreenderá é que o Presidente, que se pronuncia sobre tudo e qualquer coisa, não tire agora conclusões e ilações políticas de uma crise que, afinal, pode nunca chegar a existir.