Todos os dias vou para a escola de bicicleta, bem cedo e mesmo a tempo de duas horas ininterruptas de trabalho de modo a organizar o dia. Chego às 6horas e, agora que os dias nascem mais cedo, invariavelmente tenho à minha espera a raposa Smirre. Smirre em homenagem a um dos livros da minha vida: A maravilhosa viagem de Nils Holgersson através da Suécia, de Selma Lagerlöf.
Mas se no livro a raposa Smirre é o arquétipo do inimigo, a nossa Smirre não pretende fazer mal a ninguém. Não, a Smirre é apenas uma raposa vermelha de pêlo liso e vivo, à minha espera ao raiar de todos os dias. Claro que a raposa não está literalmente à minha espera. A raposa vive por detrás da escola, num pequeno bosque, de onde sai para apanhar os primeiros raios de sol e calor. Por coincidência, a entrada da escola é logo ao lado do seu poiso, sendo o encontro inevitável.
Apesar do chocalho constante e ruidoso da bicicleta mais o chiar dos travões à chegada, a raposa não se move um centímetro. Olha para mim em jeito de cumprimento e eu respondo com uma troca de olhares enquanto observo este animal selvagem, impávido e sereno no meio do pátio da escola.
Porque o pátio não é da escola, é da Smirre, e antes de haver uma escola, um pátio, paredes, tijolo e alcatrão, já a Smirre por aqui andava e antes dela outras tantas. Como guardiã da natureza e sua digna representante, a raposa Smirre sabe estar no pleno direito de usufruir do que é seu: todo o território onde se insere a escola e arredores. Sou eu, o ser humano, o intruso, quem deve pedir desculpa pela intromissão, todos os dias ao começo da jorna.
Magnânima, a raposa Smirre anui sempre que me vê a chegar. E não se move um centímetro. Apenas observa, de modo que este homem não se esqueça de que a natureza não é sua, antes pelo contrário.
Afinal, se a raposa é um animal selvagem porque sou eu quem foge dela? Sentimento de culpa, por certo, não por mim, mas por todos os meus irmãos.
Mas mais. Num mundo onde o ser humano se entretém a vilipendiar a natureza e a explorar os seus recursos a troco de nada, matando e espoliando animais e ecossistemas inteiros por puro prazer enquanto se enche de sangue e entranhas como um verdadeiro demónio, é impossível não me surpreender com a pacificidade da Smirre sempre que chego à escola.
Como se estivéssemos de volta ao Jardim do Éden e o ser humano e os animais convivessem em ampla harmonia, frutos de Deus e filhos de Deus num milagre constantemente vivo e presente.
Em Londres, onde muitos dos antigos terrenos reais de caça são agora parques, este milagre é possível entre esquilos que nos batem à janela a troco de amendoins, passando por veados que nos barram o caminho até às raposas impávidas e serenas no meio do pátio de uma escola. E a cidade logo aqui ao lado.
Porquê? Porque, e repito, a natureza já aqui estava antes da nossa chegada e viver sem a mesma num mar de betão e vidro onde não mora uma árvore não é apenas contraproducente, é um suicídio reflectido na saúde física e mental do ser humano nos dias de hoje.
Por isso, não deixo de agradecer todos os dias de manhã à raposa Smirre. A sua presença é sinal de como a esperança ainda vive e a paz uma possibilidade entre o ser humano e os animais. Basta querermos.
Até porque a raposa Smirre já há muito perdoou o que fizemos ao seu habitat. Nós é que ainda não nos perdoámos. Nós ainda não nos adaptámos.
Entretanto, e com a chegada do calor, a Smirre já não está sozinha. A correr ao redor do pátio e de mim temos três raposinhas. No ano passado tivemos duas. Dou os parabéns à Smirre e sorrio ao entrar para a escola. O dia começa e há mais amanhã