Sobre a noite passada: A Guerra dos Tronos lambe as feridas da batalha e abre-as outra vez

Em The Last of the Starks não há tempo para o passado, mas há sempre tempo mais divisões entre os protagonistas – e no próprio público. São 78 minutos onde ecoam Tolkien, George R.R. Martin e as escolhas particulares da versão televisiva desta saga.

Foto
A personagem Daenerys Targaryen (Emilia Clarke) DR

Divisões, divisões. Depois de ter feito uma gigantesca conta de subtrair na batalha de vida e morte que foi The Long Night, há uma semana, na madrugada desta segunda-feira A Guerra dos Tronos entrou na sua recta final a fazer contas de dividir e a espelhar cisões. Nas suas fileiras, entre rainha boa e rainha má (ou rainhas más?) e entre fãs e críticos que não conseguem chegar a acordo sobre a sua série – The Last of the Starks foi mais um episódio XL, com ganhos e perdas de tamanho único.

Contém spoilers para o quarto episódio da oitava temporada de A Guerra dos Tronos

Em 1937, um livro de fantasia sobre um pequeno explorador contrariado descobria um mundo de dragões, tesouros e cavaleiros reluzentes. J.R.R. Tolkien pintava com luz e sombras séculos de tradição literária. Um século mais tarde, também nós estamos como O Hobbit e o seu subtítulo, There and Back Again. A obra fixava um ideal histórico de honra, preto e branco que teria o seu apogeu na trilogia O Senhor dos Anéis que tanto inspirou, e contrariou, George R.R. Martin, o autor d’As Crónicas de Gelo e Fogo que originaram esta série de alta fantasia que afinal é também um drama político. E “there and back again”, numa semana A Guerra dos Tronos foi aos píncaros (possíveis) da fantasia no terceiro episódio, dando vitória “aos bons” na “Última Guerra”, como lhe chama Daenerys Targaryen (Emilia Clarke) neste quarto episódio, e devolvendo a série à capital Porto Real e ao choque frontal entre seres bem reais.

The Last of the Starks foi realizado por David Nutter (Blackwater, The Rains of Castamere, Mhysa, Mother’s Mercy e os dois primeiros capítulos desta temporada, Winterfell e A Knight for the Seven Kingdoms) e novamente escrito por David Benioff e D.B. Weiss. Os showrunners continuaram o que vinham a escrever desde The Long Night, encarregando-se de mais uns piscares de olho às temporadas passadas –​ Arya (Maisie Williams) não é uma senhora, Jon Snow (Kit Harington) ainda sabe as palavras do juramento da Patrulha da Noite – e de continuar a cortar (para já?) com os elementos de fantasia. Dragões e lobos gigantes desaparecem a olhos vistos, os sacerdotes de religiões a ultrapassar também, os videntes e os antagonistas gelados não estão para conversas. E focam-se na verdadeira questão, como resume Josh Wigler na Hollywood Reporter: “Se o Rei da Noite não é o grande vilão de Tronos, então quem é?”. Além da candidata óbvia, Cersei Lannister (Lena Headey), a rainha Targaryen está em perda de aliados, conselheiros e paciência. “A Guerra dos Tronos está mesmo a preparar a batalha das rainhas loucas?”, questiona a especialista Joanna Robinson na Vanity Fair.

Robinson alude ao governante ficcional Aerys Targaryen, o Rei Louco, a antítese do monarca justo das histórias de encantar. Neste mundo, os homens já não são os únicos que podem ser cavaleiros e as cavaleiras ficam com o seu herói. Mas no fim, “cocks are important”, como postula o eunuco Varys (Conleth Hill) sobre a sucessão ao trono, e os homens aparentemente redimidos como Jamie Lannister (Nikolaj Coster-Waldau) podem escapar-se por entre os dedos. “George R.R. Martin começou a escrever estes livros em 1996”, recordava há semanas ao PÚBLICO a medievalista Kavita Mudan Finn, “e conseguiu explorar uma sensação de grande cansaço quanto à ideia da Cavalaria Medieval”, à semelhança do que já tinha feito o autor Thomas Mallory, por exemplo, “mostrando que os cavaleiros não são sempre heróicos e bons. O tema é muito na linha do que vemos na literatura moderna e medieval na Europa e também na Ásia, mas toca um momento muito especial cultural. Em termos narrativos, Martin não faz coisas muito diferentes, só que chega a um público muito maior”.

Foto

Esse público é de dezenas de milhões de espectadores, todos com o potencial de serem críticos acutilantes ou espectadores gratos – ou ambos. O que querem, e o que queremos de A Guerra dos Tronos no seu final? Uma luta entre o bem e o mal? Uma história de cinzentos? O próprio Martin caricaturou ao PÚBLICO, em 2012, como “a fantasia contemporânea está cheia de senhores do mal vestidos de preto, forças sinistras que se agitam na obscuridade e de elfos e unicórnios que se juntam para se lhes opor. A luta entre o bem e o mal está no coração humano. Todos temos a capacidade para ambos. Os grandes heróis da história têm defeitos, pés de barro; os grandes monstros têm qualidades redentoras – Hitler adorava cães”.

A dimensão épica de The Long Night só conseguiu dividir o seu público, ora encantado com a execução da batalha e suas surpresas, ora incomodado com as suas falhas técnicas – de estratégia militar, de respeito pela mitologia criada por Martin, até de níveis de contraste e luz nos ecrãs. A natureza belicista e conspirativa de The Last of the Starks continua na mesma senda. “Derrotámo-los”, constata Tyrion Lannister (Peter Dinklage). [Mas] ainda temos de nos enfrentar”, avisa. A palavra “decepcionante” volta à Internet a par dos elogios. Perderam-se mais forças do lado de Daenerys Targaryen, a rainha que nasceu salvadora e se aproxima de uma predadora, com Rhaegal, o dragão, e Missandei, a braço-direito, a cair às mãos de Cersei Lannister e Euron Greyjoy (Pilou Asbaek). O jogo, com falta de peças e a acção acelerada, parece mais débil no tabuleiro.

Foto

“Às costas de Tyrion Lannister, A Guerra dos Tronos regressou ao que faz melhor”, diz Alison Herman no The Ringer. “O episódio mais decepcionante da oitava temporada (até agora)”, queixa-se o Vox. “O episódio foi dramático e trágico e épico mas pareceu a abarrotar”, sentiu Josh Wigler, da Hollywood Reporter. “O ritmo destes últimos seis episódios parece um pouco errático”, diz Alyssa Rosenberg no Washington Post, sobre o efeito-chicote de 74 minutos a correr contra o tempo entre Winterfell para queimar os mortos e Porto Real para enfrentar os vivos. São algumas das reacções depois de uma noite em que, mais uma vez, houve uma fuga e vários vídeos com cenas do episódio começaram a circular antes do tempo, mas em que a HBO Portugal parece ter conseguido pela primeira vez transmitir o episódio em simultâneo com os EUA. 

Os despojos da guerra, depois de um festim cheio de tensão contida e libertada, foram outra vez morte, festa, negociação e desilusão. Pouca reflexão houve sobre os acontecimentos extremos da semana passada. “Uma dívida que nunca poderá ser paga”, diz, ainda assim, Jon Snow. Não há tempo para o passado, salvo para Bran Stark (Isaac Hempstead Wright), que já não tem vontades – “Já não tenho querer. Vivo sobretudo no passado”. As explicações ficam para as entrevistas do elenco após cada episódio, para os vídeos sobre os bastidores, para os documentários e até para os dois livros em falta e que da série vão seguramente divergir. A Guerra dos Tronos é uma narrativa transmedia e faltam duas sessões de cerca de 1h20 para terminar a sua encarnação televisiva. Os seus protagonistas, eles e nós, estão também divididos. Outra vez.

Notícia actualizada às 9h49 com informação sobre transmissão do episódio

Sugerir correcção
Ler 21 comentários