Com o meu sangue escrevo a palavra “liberdade”

O estatuto social da mulher portuguesa ainda é em larga medida função de ser ou não casada e mãe, neste discurso que, durante séculos, também foi jurídico.

Leio: “uma mulher foi morta a tiro no Taguspark , em Oeiras”... a 16.ª vítima de violência de género, em 2019, em Portugal.

Dois discursos paralelos correm, em matéria de igualdade de género, no nosso País. Um, posterior ao 25 de Abril de 1974 e consagrado na Constituição da República de 1976, que nos diz existir plena igualdade entre homens e mulheres em matéria de gozo e de exercício de direitos: as mulheres podem ser presidentes da República, mineiras, astronautas ou condutoras da Carris. São livres de casar, de não casar, de namorar e casar várias vezes, de ter ou não filhos...

Outro discurso, que nos acompanha, pelo menos desde o início da nacionalidade, diz-nos, de forma não juridicamente consagrada hoje, que a mulher passa do poder do pai para o do marido (o que é simbolizado pela entrega da filha pelo pai, ao marido, no altar, na cerimónia católica de casamento), que é uma “eterna menor” que carece, pela sua vulnerabilidade, emotividade, incapacidade de se governar de forma capaz, da tutela do homem de quem, com frequência, ainda depende economicamente. O estatuto social da mulher é em larga medida função de ser ou não casada e mãe, neste discurso que, durante séculos, também foi jurídico.

As mulheres portuguesas crescem na intersecção destes discursos que são sociais, religiosos, familiares e, em parte, jurídicos. Têm, por vezes, a ilusão da liberdade: que lhes é efetivamente possível alcançar a autonomia económica, afetiva e social. Que podem mesmo ser astronautas ou presidentes da República, dissolver um contrato de casamento porque preferem celebrar outro ou, simplesmente, ficar sós. E tentam fazê-lo.

Os homens portugueses também crescem na intersecção destes discursos. Teoricamente reconhecem, em regra, às mulheres as liberdades acima referidas. Na prática, por vezes, tentam exercer o poder marital que durante séculos foi seu. A mulher que ousa sair da sua posição subordinada é deles indigna, desonra-os e deve ser punida. Como a Justiça pública já não lhes permite prender ou degredar a mulher “caída”, que os envergonhou, resta-lhes a Justiça privada. Assim, já foram mortas pelo menos 15 mulheres e uma menina em Portugal, em 2019.

Daí a essencialidade de as normas que preveem e punem a violência doméstica serem efetivamente aplicadas no nosso País. Daí a importância da consagração penal expressa do feminicídio, i.e., dos crimes de ódio com base no género, que se traduz, em regra, na prática de homicídios que têm como vítimas mulheres e são cometidos pelos homens que com elas têm uma relação afetiva. Ou da adoção de medidas, como as recentemente aprovadas em Conselho de Ministros, que permitem registar e partilhar dados sobre as situações de violência doméstica detetadas nos estabelecimentos de saúde.

Ainda que, de um modo geral, ninguém pense no conteúdo da legislação penal quando pratica um crime passional, esta desempenha uma função simbólica e pedagógica importante para prevenir que as mulheres portuguesas continuem a ter que escrever, com o seu sangue, na terra onde caem mortas, em cada mês que passa, a palavra “liberdade”.

A autora escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

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