A Lei de Bases de uma traição anunciada
Ana Catarina Mendes declarou que “o PS é o Partido do Serviço Nacional de Saúde”. Deixará de o ser se trair Arnaut.
O conteúdo da nova Lei de Bases da Saúde permanece incerto. Da negociação parlamentar surgirá uma nova Lei de Bases da Saúde que contribuirá para “Salvar o SNS” ou, pelo contrário, uma que prosseguirá o espírito mercantilista instituído pela Lei imposta em 1990 pelo PSD e CDS. Não existe terceira via e o Presidente da República sabe-o. É hora de clareza.
O Partido Socialista (PS) parece hesitar entre cumprir o testamento de António Arnaut ou, pelo contrário, subordinar-se à alma-mater inspiradora dos projetos do PSD/CDS. Na prática, ou se investe no SNS enquanto instrumento público de prestação de cuidados como pretendem as esquerdas, ou se favorece o denominado “sistema” público-privado como pretendem as direitas. Pese embora as duas filosofias sejam legítimas, impõe-se a honestidade de reconhecer que são estruturalmente antagónicas devido ao conflito que lhes subjaz: a disputa pelos recursos públicos.
Ampliar o SNS afetará os grupos económicos do mercado da saúde? Certamente. O negócio privado sorve milhares de milhão de euros públicos que poderiam ser dedicados à valorização do SNS. Todos os partidos o sabem e os utentes comprovam-no diariamente.
O Governo, através do primeiro-ministro (que, recorde-se, também é secretário-geral do PS), caminhou no sentido de honrar a palavra dada a António Arnaut. Lembramos a substituição do anterior ministro da Saúde que tentou, através do diáfano projeto da Comissão Governamental, maquilhar as medidas nucleares da Lei de 1990, designadamente: i) a manutenção da possibilidade de gestão privada de estabelecimentos públicos (PPP); ii) a manutenção das taxas moderadoras (co-pagamentos); iii) a aceitação do aliciamento dos profissionais de saúde para o setor privado; e iv) a continuação da arbitrariedade nos seguros de saúde. De facto, foi necessária uma mudança governamental para que o PS pudesse afrontar o status quo institucionalizado do “bloco central de interesses” e iniciar o seu percurso legislativo de inversão à Lei de 1990, como historicamente vinha defendendo.
Recentemente, o Grupo Parlamentar do PS (GP-PS) deu o dito pelo não dito. Esse PS prefere prosseguir pelo caminho iniciado pela direita, apenas sugerindo outro “ritmo e dose”. Na verdade, as alterações cirúrgicas que propôs não só tentam desvirtuar a proposta negocial apresentada pelo Governo como, até (incautamente talvez?), poderão contribuir para que a nova Lei de Bases da Saúde possa vir a ser pior que a Lei atual. Exagero? Não.
Ao recauchutar as velhas ideias da lei vigente (1990), o GP-PS propõe i) a manutenção da gestão privada de unidades públicas de saúde (PPP); ii) a aplicação de taxas moderadoras (co-pagamentos); e iii) a aceitação da indisciplina dos seguros de saúde. Todavia, elimina o “Estatuto dos profissionais do SNS” e omite a caracterização do travejamento organizacional dos serviços públicos, ambos presentes na lei em vigor. Ora, se o projeto do GP-PS em nada contribui para travar a promiscuidade entre público e privado, nem para desonerar as famílias, nem para disciplinar os seguros de saúde, nem para valorizar os profissionais do SNS, o objetivo, afinal, parece ser apenas o da aniquilação das estruturas orgânicas do Ministério da Saúde. O que restará, então, do SNS? A memória?
Caso ainda subsistam dúvidas quanto à natureza do projeto do Grupo Parlamentar do PS bastará reparar como, na Comunicação Social e no Parlamento, a direita já canta vitória.
A direita festeja a superação do contratempo antes gerado pela rejeição de António Costa às “portas e alçapões” do projeto da Comissão Governamental, entretanto reapresentadas pelo PSD/CDS. Festeja simultaneamente a vitória da chantagem de Belém(s). É a expectativa da vitória do status quo mercantilista
Ana Catarina Mendes, secretária adjunta do PS, declarou que “o PS é o Partido do Serviço Nacional de Saúde”. Deixará de o ser se trair Arnaut. Deixará de o ser quando, nesta matéria, prescindir dos seus parceiros à esquerda co-fundadores do SNS. Deixará de o ser se, neste momento de definição estratégica, não tiver coragem e determinação política para assumir o SNS de gestão integralmente pública; valorizador dos profissionais de saúde; sem taxas moderadoras sempre que clinicamente recomendado; de qualidade e para todos os cidadãos.
A autora escreve segundo o novo Acordo Ortográfico