Golpe de Estado ou golpe de comunicação: Guaidó desperta a oposição libertando López
O autoproclamado presidente voltou a agitar a luta contra o Governo venezuelano, tirando da prisão o mais conhecido opositor. Confrontos nas ruas marcaram o dia. Bolton garante que três altas figuras do regime andam a falar com a oposição.
Como sempre na Venezuela, não há meio-termo. O que aconteceu esta terça-feira em Caracas foi uma tentativa de golpe militar, um golpe de comunicação, um incentivo à mobilização, o reacender de uma luta que estava meio adormecida nas últimas semanas?
Juan Guaidó, o autoproclamado Presidente da Venezuela, despertou o país às seis da manhã locais com um vídeo, ladeado por militares, para garantir que “o momento é agora”. No vídeo, Guaidó garante que “a família militar deu o passo definitivo” para se unir à oposição: “O fim definitivo da usurpação começou hoje”.
Atrás dele, bem visível à sua esquerda, aquele que é considerado o verdadeiro líder da oposição, Leopoldo López, libertado da casa onde cumpria a sua pena de prisão domiciliária (condenado em 2015 a uma pena de 13 anos e nove meses), sem que a segurança militar que o guardava o tivesse impedido.
Este foi o princípio de um dia de confrontos em Caracas, com os opositores do Presidente, Nicolás Maduro, a juntarem-se perto da base militar de La Carlota, cortando a auto-estrada que atravessa a cidade.
A presença de Leopoldo López na rua, junto ao homem que escolheu para executar o papel que ele próprio não podia cumprir por estar detido, galvanizou a contestação nas vésperas de uma grande manifestação agendada para este 1.º de Maio.
Para Filipe Vasconcelos Romão, esta acção visava “sobretudo reanimar o oposicionismo na Venezuela que estava a perder gás”. Um “golpe de comunicação”, destinado a “dar uma imagem de fraqueza do regime, um regime que nem consegue garantir que o seu principal opositor escape da prisão domiciliária”, acrescentou o professor da Universidade Autónoma de Lisboa e professor convidado da Universidade ORT do Uruguai.
O regime reagiu rapidamente para assegurar que o golpe não fosse fatal para o Governo, enfatizando que se tratava de um grupo pequeno de desertores e que o grosso das forças militares estavam com o governo e a revolução bolivariana. “Conversei com os comandantes que me manifestaram a sua total lealdade. Apelo à máxima mobilização popular para assegurar a vitória da paz. Venceremos!”, escreveu Maduro no Twitter.
O ministro da Defesa, Vladimir Padrino, rodeado de uma série de oficiais e soldados de elite, todos esmerados na sua farda, onde não se via nada fora do seu sítio e pestanejando apenas o estritamente necessário para não estragar o retrato marcial que o governo queria transmitir, veio afirmar que os militares continuavam leais, que se tratava apenas da acção de um pequeno grupo que tentara, “sem dúvida nenhuma um golpe de Estado”. E deixou no ar a advertência: “Se for preciso usar armas (…), vamos usá-las”.
“Este acto anda há procura de mortos, anda à procura de derramamento de sangue nas ruas de Caracas. O resto do país está na mais completa normalidade”, acrescentou o ministro, responsabilizando Guaidó e a oposição por toda a violência que possa vir a acontecer, “de toda as mortes que venham a ocorrer”.
Uma ameaça directa para os desertores (25 militares de baixa patente pediram asilo na embaixada do Brasil) e um aviso a Guaidó que assegurou várias vezes ao longo do dia, bem como os seus apoiantes, que não se tratava de um golpe de Estado, nem havia uma vontade de resistência violenta a um regime que continuam a apelidar de usurpador.
“Convoco todos os soldados, toda a família militar, a que nos acompanhem nesta gesta como sempre fizemos dentro do marco da Constituição, dentro do marco da luta não violenta”, sublinhou Guaidó. O seu representante em Washington, Carlos Vecchio, negou perante a imprensa norte-americana e de muitos outros países que não se trata “de um golpe de Estado, mas um processo constitucional e democrático” que marca “o começo do processo de libertação”.
Seja o que for trata-se de “uma manobra de comunicação muito bem elaborada” por parte de Juan Guaidó, explica Filipe Vasconcelos Romão. Destinada a voltar a acender o pavio das ruas e “para tentar aquilo que Guaidó tem tentado vir a fazer” que é “realizar uma ruptura nas forças de comando militares”.
O Presidente da Turquia, Recep Tayyip Erdogan, um dos apoiantes internacionais mais explícitos de Nicolás Maduro veio a público, através da sua conta oficial do Twitter, condenar “a tentativa de golpe de Estado na Venezuela”, pedindo ao “mundo inteiro que respeite as preferências democráticas das pessoas da Venezuela”.
A ideia de que a orquestração política dos acontecimentos desta terça-feira na Venezuela foi feita no exterior defendeu-a o ministro dos Negócios Estrangeiros, Jorge Arreaza: “Não se trata de um golpe dos militares. É algo planeado directamente em Washington, no Pentágono e no Departamento de Estado, e por Bolton”.
O mesmo John Bolton, conselheiro de Segurança Nacional do Presidente Donald Trump, divulgou em conferência de imprensa a existência de brechas no regime venezuelano, garantindo que há três figuras de topo que têm vindo a conversar com a oposição, nomeadamente o ministro da Defesa, o juiz-presidente do Supremo Tribunal de Justiça, Maikel Moreno, e o comandante da Guarda Presidencial, Iván Rafael Hernández. Segundo Bolton, todos concordaram que “Maduro tem de sair”.
A denominada Operação Liberdade, levada a cabo pela oposição para libertar López (que entretanto se refugiou, junto com a mulher e uma filha, na embaixada do Chile em Caracas, informação divulgada pelo ministro chileno dos Negócios Estrangeiros, Roberto Ampuero), está a ser liderada por um militar de topo, o director dos serviços secretos militares (Sebin).
Diosdado Cabello, presidente da Assembleia Constituinte, criada pelo Governo para contornar a Assembleia Nacional controlada pela oposição, tinha adiantado que militares do Sebin teriam participado na libertação de López. Gerardo Márquez, presidente da comissão de soberania da Assembleia Constituinte, em declarações ao El Universal, confirmou o envolvimento do general Manuel Christopher Figuera, “que é quem praticamente dirige a operação”.
A perspectiva de quem vê a situação de fora dos gabinetes do poder e dos meandros da oposição é a de que os acontecimentos desta terça-feira não parecem vir resolver nada. “Estamos num impasse que era importante que se resolvesse a bem e em paz”, disse ao PÚBLICO António de Freitas, conselheiro das comunidades portuguesas em Caracas. A situação “é preocupante”, mas “há que esperar o desenvolvimento dos acontecimentos”, acrescentou o conselheiro, para quem “só se consegue um país desenvolvido com democracia”. “Tenho dúvidas que o que temos neste momento seja uma democracia”.
Olhando para os confrontos na zona da base de La Carlota, em Caracas, com os manifestantes a desafiarem os blindados militares com pedras e paus (há notícia de um manifestante atropelado por um blindado) e as forças da ordem a responderem com gás lacrimogéneo e balas de borracha, não parece que o desejo de António de Freitas, de que as coisas se resolvam “em bem e em paz” se venha a concretizar. Há notícias na imprensa venezuelana que dão conta de 38 feridos, a maioria atingidos com bolas e balas de borracha disparadas pela polícia.
Como refere ao PÚBLICO Filipe Vasconcelos Romão, só através da “negociação entre a elite política e as chefias militares, sobre o cálculo de custo-benefício” de manter a situação ou aceitar a mudança, é que se poderá superar o impasse num país à míngua, com graves problemas económicos e sociais, extremamente pressionado do exterior.
E a resposta a essa análise de custo-benefício, refere o especialista em Relações Internacionais, poderá ter três soluções viáveis em cima da mesa: a opção de seguir com um chavismo sem Maduro, optar por um governo de transição até novas eleições ou escolher um executivo a partir da oposição moderada, entre o extremismo de Guaidó e López e o posição extremista do chavismo.