Especialistas pedem a Macron que não acelere a reconstrução de Notre-Dame
Uma carta aberta com mais de mil signatários apela ao presidente francês para ouvir os profissionais do património antes de definir estratégias e anunciar prazos.
Mais de mil especialistas, incluindo conservadores, curadores, arquitectos, engenheiros, historiadores de arte, professores de história medieval e outros académicos de todo o mundo, divulgaram uma carta aberta na qual pedem ao presidente francês Emmanuel Macron que deixe cair o anunciado objectivo de reconstruir Notre-Dame até 2024 e deixe o diagnóstico dos estragos, a metodologia de reconstrução e a fixação de prazos nas mãos dos técnicos.
Delphine Cristophe, que dirige o departamento de conservação dos monumentos e colecções no Centre des Monuments Nationaux, equivalente francês da Direcção-Geral do Património Cultural, Philippe de Montebello, antigo director do Metropolitan Museum of Art, em Nova Iorque, Gérard Audinet, director das Casas de Victor Hugo em Paris e Guernsey, Dominique Cerclet, arquitecto e antigo conservador regional dos Monumentos Históricos da região de Île-de-France, ou ainda o prestigiado historiador de arte italiano Salvatore Settis são alguns dos 1169 subscritores deste apelo a Macron, originalmente publicado no edição de domingo do jornal Le Figaro.
A lista inclui dezenas de actuais e antigos funcionários da administração central e regional envolvidos na conservação do património e recebeu já o apoio da Associação dos Conservadores de Monumentos Históricos, da Federação Francesa dos Profissionais de Conservação e Restauro ou da Associação Geral dos Conservadores de Colecções Públicas de França, a par do de outras instituições francesas e internacionais.
Logo após o incêndio de 15 de Abril que destruiu parcialmente a catedral, Macron anunciou na televisão, numa breve comunicação ao país, que Notre-Dame iria estar reconstruída, e “mais bela do que nunca”, em 2024, quando Paris acolherá os Jogos Olímpicos. O presidente nomeou ainda um general aposentado, Jean-Louis Georgelin, para supervisionar as operações, e o governo avançou já com um projecto de lei que pretende acelerar os trabalhos de reconstrução, isentando-os de alguns constrangimentos legais.
Opções que estes mais de mil especialistas contestam. Citando um tweet que o arquitecto Jean Nouvel publicara em reacção ao anúncio televisivo de Macron, pedem ao presidente que “deixe o tempo do diagnóstico aos historiadores e especialistas antes de se pronunciar sobre o futuro do monumento”. Afirmando-se conscientes de que “o calendário político exige acção rápida”, e do “quanto uma Notre-Dame mutilada pesa sobre a imagem de França”, os subscritores profetizam, no entanto, que a questão da reconstrução da catedral “ultrapassará os mandatos políticos e as gerações” e é a essa luz que as actuais decisões virão a ser julgadas.
Historiando o papel pioneiro desempenhado pela França no âmbito da protecção patrimonial, bem como o seu contributo para o reconhecimento internacional de um quadro deontológico orientador para acções de restauro ou reconstrução de património – plasmado em textos como a Carta de Veneza (1964) ou o mais recente Documento de Nara sobre a Autenticidade (1994) –, os signatários lembram ainda a Macron que a França dispõe de alguns dos melhores especialistas do mundo em recuperação patrimonial, e que muitos deles trabalham no próprio Ministério da Cultura. “O Governo não pode deixar de os ouvir”, diz a carta. “Saibamos reconhecer a sua competência, tomemos o tempo necessário para encontrar o caminho certo e então, sim, fixemos um prazo ambicioso para um restauro exemplar não apenas para o presente, mas para as gerações vindouras”.
Sublinhando que não se dirigem ao presidente para lhe propor “esta ou aquela solução”, estes especialistas argumentam que “é demasiado cedo” para se fazer escolhas que terão de ter em conta os constrangimentos técnicos impostos pelo estado do edifício, mas que deverão também respeitar o que Notre-Dame representa e resultar de “uma abordagem escrupulosa e reflectida” da deontologia da reconstrução patrimonial.
E avisando o presidente de que “o mundo está a olhar” para França, a carta conclui: “Não se trata agora de um gesto de arquitectura, mas de milhões de gestos, humildes e especializados, governados pela ciência e pelo saber, no quadro de uma política patrimonial renovada, ambiciosa e voluntarista, ciosa de cada monumento, e que devolverá à catedral de Hugo, à de Viollet-le-Duc [o arquitecto que dirigiu o elogiado restauro de Notre-Dame no século XIX], à nossa, à vossa, o seu lugar e a sua função na história e no porvir”.