Racismo sem escala
Talvez não seja possível varrer o flagelo dos estádios, mas há que continuar a partir pedra.
É tão recorrente como uma constipação e tão devastador como um ciclone. Essa espécie de bullying intermitente a que chamamos racismo continua vivo e bem vivo por esse mundo (do futebol) fora, sem olhar a geografias ou ao pedigree dos competidores. E já se percebeu que não basta dizer basta, mesmo fazendo a voz grossa com que falam as autoridades.
Talvez não seja possível varrer o flagelo dos estádios, mas há que continuar a partir pedra. E se partir pedra significar endurecer (ainda mais) as multas aos clubes infractores e às federações prevaricadoras, agravar o número de jogos disputados à porta fechada, expulsar um clube ou federação de uma competição, pois seja. Por muito que soe sempre a pouco.
Os casos mais recentes, como o de Hudson-Odoi nos jogos com o Dínamo Kiev e a selecção de Montenegro, ou o de Moise Kean no embate da Juventus com o Cagliari, ajudam não só a reintroduzir na opinião pública um debate que é cíclico, mas também a agregar testemunhos de um passado em que os abusos eram varridos para debaixo do tapete.
O futebol, a este respeito, não é mais do que o espelho de uma sociedade que o máximo a que pode aspirar é a transformar em excepções o que antes foi comportamento de uma maioria pouco esclarecida. Por isso, quando nos deparamos com episódios de abuso que hoje já passam do vociferar a partir das bancadas para o relativo anonimato das redes sociais (como sucedeu com Wilfried Zaha, alvo de um tweet racista após o jogo entre Crystal Palace e Newcastle), devemos pelo menos reconhecer que o comportamento dentro de muitos dos estádios tem, de uma forma genérica, dado sinais de evolução.
Por razões de vária ordem, que vão desde os alicerces culturais até aos fluxos migratórios que têm marcado a História, cada caso é um caso e o rácio dos abusos verbais oscila em função das curvas do mapa-mundo. Ainda assim, os números que sobressaem de um estudo recente sobre o tema ajudam a enquadrar a questão: um inquérito a 27.000 adeptos de 38 países permitiu concluir que 54% já testemunharam, pelo menos uma vez, cânticos ou insultos de teor xenófobo num estádio.
Mais do que ter a pretensão irrealista de dinamitar estes valores, importa continuar a dar sinais, firmes e irreversíveis, de implacabilidade perante atitudes impróprias do século XXI. Alguns já têm provocado impacto nas competições, como aconteceu com os jogos à porta fechada aplicados ao Inter de Milão no final do ano passado (na sequência de um incidente diante do Nápoles) ou à selecção da Croácia na caminhada para o Euro 2016 (por força dos ataques verbais a Mario Balotelli). Mas é preciso ir mais longe.
Ultimamente, a UEFA tem insistido em apelar aos árbitros para que interrompam ou cancelem os jogos sempre que detectarem “comportamentos racistas de grande magnitude e intensidade”. Ora, tenho para mim que, para os insultos chegarem aos ouvidos do árbitro num ambiente insuflado por milhares de espectadores, esse pressuposto estará sempre garantido. Para além do mais, esta escala virtual e fortemente subjectiva serve somente para passar uma esponja sobre o modus operandi dos agressores mais tímidos.
Compreendem-se as cautelas quando se trata de punir de forma mais severa entidades às quais não podem ser assacadas responsabilidades directas pela falta de formação de terceiros, mas se esse dano colateral ajudar a gerar adeptos mais conscientes, talvez os agentes do futebol devam ponderá-lo como um contributo para um desígnio maior. Até porque se há algo a que a popularidade e a visibilidade mediática desta modalidade obrigam, é a servir de exemplo para a vida que se prolonga para além dos 90 minutos.