Itinerários para o silêncio
Calvino mostra-se mais uma vez um mestre da precisão da linguagem e do rigor estilístico.
Italo Calvino (1923-1985) escreveu quase todos os contos inclusos nesta colectânea nos anos 1950 — os últimos deles já na década de 1960. Os Amores Difíceis foi o título com que o autor italiano reuniu, pela primeira vez em 1958, uma série de histórias curtas (que não incluía quatro dos contos deste livro agora traduzido): textos que foram posteriormente revistos, acrescentados, e mudados os títulos — de maneira a que todos comecem por “A aventura de …”, conforme são agora apresentados. Na nota introdutória, então anónima mas que agora se sabe ter sido da autoria do próprio Calvino, ele anuncia que o que está na base de muitas destas histórias “é uma dificuldade de comunicação, uma zona de silêncio no fundo das relações humanas”.
É de facto esse silêncio o que domina as lentas e pouco perceptíveis movimentações do soldado de infantaria Tomagra sobre uma impassível matrona, uma viúva provinciana “alta e formosa” — no conto de abertura, A Aventura de um Soldado — durante uma viagem de comboio. O desejo vai sendo encenado em etapas de silêncio: uma perna que encosta, mãos que se tocam com brevidade, joelhos que se atraem como ímanes, dedos que afagam uma coxa; até ao auge, em que finalmente passa “pela macieza da viúva um primeiro estremeção, como uma enxurrada de longínquas correntes marinhas por secretas vias subaquáticas”.
Mas nem sempre essa “zona de silêncio” é logo perceptível, pois muitas vezes a história descreve movimentos interiores, itinerários que são percorridos silenciosamente, sem serem expressados de maneira evidente, ou em reacções psicológicas óbvias. Assim acontece, por exemplo, no segundo conto, “A Aventura de um Bandido”: Mario Albanesi, de alcunha Gim Bolero, foge da Polícia e acaba a pedir abrigo a uma amiga; numa reviravolta teatral e cómica, entra o polícia também no quarto e enfia-se na cama da amiga de Gim; depois de algumas peripécias, o fugitivo pede para ser preso.
Num outro conto, A Aventura de um Empregado, são os mecanismos da memória que vão conduzindo os acontecimentos ao silêncio. A Enrico Gnei, empregado de escritório de “aparência discreta e um tanto anónima”, aconteceu passar uma noite com uma senhora lindíssima. Considerou ele o sucesso inesperado daquela noite como uma sorte preciosa. Saído de casa da senhora, Gnei sentia ter tido “tudo o que de melhor poderia desejar no mundo”, e no espaço de uma noite. Ao longo do dia, foi tentando relembrar tudo segundo por segundo, reconstruindo as horas passadas, de forma que nada esquecesse. Mas sem perceber bem porquê, o final do dia chegou com “uma opaca brancura” a ir apagando todas as lembranças. Igual tema, o do desvanecimento da memória, ou os caminhos da sua labilidade, surge no conto A Aventura de um Viajante, em que Frederico V., morador numa cidade da Itália setentrional, ama Cinzia, residente em Roma. Tinha por costume apanhar um comboio nocturno para se encontrar com a amada. Uma manhã, ao chegar à estação Termini, em Roma, ligou a Cinzia e “compreendeu que não conseguiria dizer-lhe nada do que tinha sido para ele aquela noite” que já se desvanecia.
Em Os Amores Difíceis, Calvino mostra-se mais uma vez um mestre da precisão da linguagem e do rigor estilístico. O que sobressai nestes contos é uma espécie de ideal do que é a “perfeição da composição narrativa”, e que o próprio um dia atribuiu ao facto de ter tido tempo de incluir todo o Maupassant e todo o Tchekov nas leituras da juventude. Mas, e como parece ter sido comum na literatura italiana das décadas de 1950 e 1960, há uma recuperação de formas de expressão oitocentista (visíveis também em O Barão Trepador e O Visconde Cortado ao Meio, ambos de Calvino e escritos por essa época), dos romances de cavalaria e dos contos populares (Calvino organizou, antologiou e escreveu durante anos contos da tradição popular italiana). Apesar de tudo isto, o que irrompe em Os Amores Difíceis é a mestria da análise psicológica, os mecanismos interiores da acção, que neste livro atinge o pico em A Aventura de uma Banhista, a história de uma mulher que perde o fato de banho no mar diante de uma praia cheia de banhistas.