“Temos de definir qual é o caminho. Queremos continuar a fingir a Europa?”

Foi ministro da Defesa e dos Negócios Estrangeiros em alguns momentos crucias da adesão de Portugal à Comunidade Europeia. O seu prestígio no Palácio das Necessidade não diminuiu com o tempo. Foi Presidente da Assembleia da República por dois mandatos. Retirou-se da política activa desde então, reservando o tempo para algumas aulas e para a Fundação Francisco Manuel dos Santos, a que preside. Não tem dúvida de que a Europa, ou deixa de fingir que existe, ou está condenada ao declínio. A última entrevista da série A Europa e o Presente.

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As democracias liberais estão sob forte pressão? É verdade, mas muitas delas ainda resistem bem, nota Jaime Gama. A relação transatlântica sobreviverá a Trump? O processo de reversão já começou. Para o antigo ministro dos Negócios Estrangeiros, a China exige por parte da Europa uma atenção particular à sua estratégia de investimento. A Rússia, por seu lado, adaptou aos tempos actuais os mesmos instrumentos que utilizava na Guerra Fria para minar as democracias ocidentais e enfraquecê-las. Numa análise ao actual quadro político no seio da UE, Gama sublinha que a França é hoje um laboratório da Europa e dela dependerá, como sempre, o futuro da integração. Já a Alemanha tem ainda de aprender a liderar. Do outro lado do Canal da Mancha, no Reino Unido o “Brexit” é a demonstração de que a simplificação dos debates pode levar a decisões negativas. Os países do Sul não se podem render à sua incapacidade para viver com contas certas e melhorar a competitividade das suas economias. Finalmente, não vale a pena continuar a “fingir a Europa”, sempre a coberto de grandes frases. A esperança está em que nunca, como hoje, a pressão que o mundo exerce sobre ela foi tão grande. Obrigando-a, porventura, a tomar decisões.

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Há uma crise interna à União Europeia e uma crise de inserção internacional perante um mundo em profunda mutação. Podemos dizer que esta crise europeia não é igual às outras?
As anteriores crises europeias tinham um padrão estabilizado, que era a existência de um conflito Leste-Oeste com campos definidos na cena internacional.

Até ao fim da Guerra Fria.
A partir daí, os cenários foram evoluindo. Foram mais flexíveis, num primeiro momento — o momento do alargamento das instituições democráticas e das economias de mercado à Europa Central e de desorganização da Rússia. Mas, com o evoluir dos tempos, a periferia europeia torna-se mais complexa no Mediterrâneo e no Médio Oriente. A Rússia volta a adquirir um protagonismo internacional que não tinha. Surgem actores emergentes muito fortes como a China, mas também como a Índia, o Paquistão, o Irão, a Turquia, em dessintonia com a União Europeia. E mais recentemente, os EUA resolvem enveredar por uma política de afirmação da América em ruptura com a própria ordem internacional que criaram a seguir à II Guerra Mundial. Portanto, crise das organizações internacionais, crise das referências de política externa, realinhamento das grandes e das pequenas potências, procura de majoração de espaço próprio de potências emergentes, descontrolo da política de armamentos, quer nucleares, quer convencionais, aparecimento de novos agentes internacionais, como o factor islamismo, o factor populismo, o factor nacionalismo radical, o factor cepticismo sobre as instituições multilaterais, o negacionismo em relação às alterações climáticas, uma desconfiança do sistema financeiro e bancário desde a crise de 2008, migrações descontroladas — tudo isto cria um envolvimento internacional que fragiliza os quadros de referência existentes. E que, naturalmente, também atinge a União Europeia.

O próprio projecto de integração europeia?
A União Europeia vê, por um lado, um grande país querer abandoná-la — o Reino Unido. Por outro lado, surge a constituição de blocos dentro da União Europeia — um primeiro, centrado em torno do rigorismo financeiro e orçamental, constituído pelos países do Norte da Europa e do Báltico; outro, constituído pelos países de Visegrado, com problemas complexos de inserção na União Europeia em virtude das suas relações conflituosas no passado com os próprios impérios europeus; outro ainda, constituído pelos países da Europa do Sul que, também por virtude da crise financeira internacional, entram num processo deficitário, descontrolam as suas finanças públicas e têm de proceder a ajustamentos nem sempre bem recebidos junto das suas populações.

Depois, questões que tradicionalmente não assomavam na agenda política, irrompem no discurso político. E esses novos intervenientes no espaço público desestruturam o que era a cultura política tradicionalmente instituída na Europa a seguir à II Guerra Mundial. Ou seja, estamos perante um quadro inteiramente novo e para o qual tem havido a procura de respostas imediatas e pragmáticas, mas em relação ao qual, até ao momento, não se vislumbra a apresentação de uma ossatura, um esquema, um modelo de resolução susceptível de garantir mais estabilidade.

Talvez começasse pela crise das democracias liberais. Houve uma crise financeira, uma grande recessão, uma crise do euro. Mas há a percepção de que houve, por parte das lideranças europeias, uma certa complacência em relação à inevitabilidade de uma crise política, que acabaria por resultar esta sucessão de crises sistémicas. Como no passado, a crise fez emergir uma corrente política que a Europa acreditava ter deslegitimado — o nacionalismo. Quais são as raízes desta crise das suas democracias? Na globalização que excluiu? De sociedades muito mais abertas à imigração? Resulta de um novo paradigma de comunicação?
Não tenho uma visão catastrofista sobre a situação das democracias liberais. Há forte erosão, há tensão, há aparecimento de antagonistas diferentes. Mas não há o colapso central do sistema. Tudo isso tem operado nas fronteiras, nas periferias do sistema político essencial. Há muito que certos factores se vinham fazendo notar, mas que passaram a existir com mais frequência. Receios de perda de identidade cultural por parte de pequenas nações, como é o caso dos países nórdicos. Receio de não respeito da sua soberania plena, como é o caso de muitos dos países da Europa Central. Receio de ver as suas fronteiras desprotegidas, como é o caso de países como a Itália ou como a Hungria ou outros países dos Balcãs. Receio de ver a situação económica e social de certas franjas menos competitivas ser degradada. Receio de insegurança quanto à organização das grandes cidades. Receio de haver uma penalização dos resultados sociais devido à falta de transparência e à corrupção nos sistemas políticos. Há, portanto, um conjunto de factores que leva a que certos discursos políticos passem a ser gratificantes. Mas é certo que, na maioria dos casos, esses discursos radicais não são acompanhados pela existência de actos de violência, pela organização de milícias armadas, pela organização de grupos de choque, como foram os totalitarismos entre as duas guerras mundiais. Não quer dizer que não existam pequenos segmentos dessas franjas, circunscritos, que recorrem à violência criminal, mas isso não é algo que contamine o todo.

Os gilets jaunes utilizaram a violência como forma de propaganda.
Em relação a muitos desses movimentos novos, há que distinguir o que é genuíno e proveniente de algum pulsar da opinião pública, daquilo que é organizado, que se infiltra e que tem várias proveniências — umas endógenas a essas sociedades, mas outras também muito apoiadas na projecção de objectivos geopolíticos para a fractura das democracias europeias e para a fractura do sistema político emergente da União Europeia. É curioso verificar como se concentram nesse tipo de actividades — na extrema-esquerda e na extrema-direita — organização de financiamento, grupos de produção de conteúdos digitais, grupos que procuram organizar de uma forma transeuropeia essas correntes políticas e dar-lhes uma nova dinâmica. Durante muitos anos, estivemos habituados, na Europa, a viver com organizações que financiavam os agentes políticos da democracia liberal e que, no alargamento à Europa Central, continuaram a desenvolver a sua actividade. No caso dos Estados Unidos, isso foi durante muitos anos a prática das suas fundações e instituições. Umas apoiavam a esquerda moderada, outras apoiavam o conservadorismo moderado. Hoje, temos em cena grupos económicos que investem em actividades político-culturais que apoiam o populismo, o separatismo. E também é curioso verificar que muitas dessas actividades recebem apoio, não apenas dessas fundações de origem norte-americana, mas também da Rússia de Putin, que descentraliza para os seus oligarcas algumas das acções de apoio a formações políticas radicais. E não apenas de extrema-esquerda, também de extrema-direita. O enfraquecimento da Europa e de certos países da Europa, com a emergência desses populismos, é benéfico para o objectivo da Rússia de alargar o seu espaço estratégico nas suas imediações.

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Como fazia no tempo da Guerra Fria?
É curioso verificar que, durante anos, em relação aos países da Europa Ocidental, a Rússia usou o modelo soviético de apoio aos Partidos Comunistas ortodoxos ou aos movimentos da paz. E, ao mesmo tempo, utilizava acções especiais para convencer dos seus méritos franjas intelectuais capturáveis. Hoje, o modelo é bastante diferente. Já não há a pressão militar do Pacto de Varsóvia. Já não há os partidos comunistas pró-soviéticos com scores eleitorais muito fortes. Já não há os movimentos da paz. Agora, o que há é o apoio a estes novos movimentos, inclusivamente a movimentos de extrema-direita. Porque esses movimentos, ao desestabilizar algumas democracias, vão fazer diminuir o campo de uma visão mais realista sobre o que é a nova ambição russa no território europeu e vão, em nome do nacionalismo, criar uma solidariedade com o nacionalismo russo.

Como já vemos em vários países, com consequências políticas importantes.
Vão bater-se pela diminuição das sanções [aplicadas à Rússia pela União Europeia depois da anexação da Crimeia], pelo estabelecimento de relações económicas muito próximas. Vão beneficiar daquilo a que eles próprios chamam de reorganização da Eurásia, com um lugar central para a Rússia. Hoje, os chamados partidos-satélites já não são o que eram nos anos 1940, mas forças de outra natureza e com outras maneiras de intervir. Por exemplo, com o recurso ao digital que dispensa a Rádio Moscovo; com conteúdos que não são directamente ideológicos mas que são conteúdos muito intensos de desinformação para o favorecimento de certas análises da situação internacional que vão ao encontro do desígnio da reconstituição do poder internacional russo.

Há dois países fundamentais na União Europeia, de cuja relação depende muita coisa. A França é um caso muito interessante, que vai para além dos gilets jaunes…
Não basta ver o que fazem e o que dizem os gilets jaunes. Também é preciso apurar alguma coisa sobre quem paga. Um movimento desestruturado é o ideal para, sobre ele, se catapultar um comando.

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A França tem outra particularidade, no quadro da evolução dos sistemas políticos europeus, que é hoje um novo partido, criado pelo Presidente Macron, que destruiu ou enfraqueceu o velho sistema político francês. E que se afirmou também como a mais forte barreira para a ascensão da Frente Nacional de Marine Le Pen. Este modelo é perigoso para a integração europeia e para a própria democracia liberal, na medida em que não tem alternativas dentro do sistema?
Até aqui, esse movimento foi muito útil para isolar e derrotar Marine Le Pen nas presidenciais e nas legislativas. E vamos ver o que se vai seguir. Porque não é líquido que, da acção dos gilets jaunes, resulte unicamente como beneficiado o campo de Marine Le Pen. Pode beneficiar também a capacidade de Macron para prefigurar o restabelecimento da segurança pública, gratificante aos olhos de alguns sectores do eleitorado descontentes com a desordem.

É, um pouco, o que as sondagens mostram.
Na França, estamos a assistir a um laboratório do que pode vir a acontecer em outras sociedades europeias. O que se passa em França é vital para o futuro da União Europeia, porque é um grande país que tem uma visão muito favorável ao reforço da União Europeia, reforçada com esta orientação de Macron. Porque é um país que tem condições para equilibrar com a Alemanha a arquitectura europeia. Porque é um país que tem também responsabilidades internacionais fortes e, consequentemente, um país onde a mudança de campo estratégico significaria um grave desequilíbrio para a vida internacional e para o sistema internacional estável que todos nós desejamos.

O outro país cada vez mais central, que viu o seu poder reforçado com a crise do euro, é a Alemanha. Durante muto tempo, a Alemanha atribuía à integração europeia um interesse absolutamente vital. Hoje, quando olhamos para Berlim, já não percebemos tão claramente para onde vai ou como define o seu interesse vital.
A Alemanha tem tido uma evolução política interessante. Apesar de ter assistido, primeiro, ao nascimento de um partido pós-comunista, o Die Linke, e depois ao nascimento da Aliança para a Alemanha [AfD], [o sistema politico] mantém a CDU e o SPD, mesmo que com espaços eleitorais reduzidos, e tem visto florescer o partido Os Verdes, que amplia o campo pró-europeu e o campo liberal-democrático. Se é certo que os partidos tradicionais têm vindo a diminuir, não são os partidos radicalmente anti-sistema que têm demonstrado uma capacidade para se tornarem maioritários. Além disso, no campo cristão-democrata, a CDU sai reforçada sobre o seu aliado [da Baviera] CSU e com maior capacidade para renovar uma linha política. Ao que tudo indica, enquanto o SPD tem tido dificuldade em reencontrar um caminho, a CDU, com o anúncio de uma nova liderança, está a posicionar-se num campo conservador bastante robusto, com o qual tem capacidade de ir buscar eleitorado à CSU, à AfD e ao Partido Liberal. E as propostas que têm surgido da nova líder da CDU substantivam uma visão da Europa, não são propostas que façam cedências antieuropeias. É certo que há diferenças em relação às propostas de Macron, mas são propostas de quem acredita numa União Europeia que funcione e que seja mais robusta. Não são sugestões que venham do campo do eurocepticismo.

Mas são, apesar de tudo, sugestões que parecem enquadra-se num desejo de maior autonomia da Alemanha para levar a cabo os seus objectivos. Berlim conseguiu gerir a crise do euro sem concessões a outras políticas. Constrói um segundo gasoduto para abastecer-se directamente da Rússia. Há um conjunto de decisões unilaterais às quais a velha Europa não estava habituada.
Mas a modalidade pela qual a Alemanha vê esse caminho é uma modalidade que está ancorada numa visão europeia, não é o cenário da ruptura com as instituições europeias.

Claro. Mas é uma mudança.
Nós temos de perceber que, na Europa, para haver um entendimento mais profundo, é necessário que todos tentem aproximações nos pontos certos. Porventura, a Alemanha deve compreender melhor a necessidade de contribuir com a sua economia para fazer crescer a economia europeia e não para afastar-se do resto da Europa. A Alemanha deve ter o sentimento de que, ao ser beneficiada com o euro enquanto economia exportadora, tem responsabilidades para com a união económica, que devem ser mensuráveis e que implicam, em muitos casos, um crescimento interno da sua massa salarial, um crescimento das suas importações aos parceiros europeus, um crescimento do seu investimento no resto da Europa e não fora da Europa. O papel da Alemanha tem também de ser entendido nessa dimensão. Mas, do outro lado, é absolutamente necessário que os países da Europa do Sul ganhem também uma cultura de responsabilidade financeira e orçamental, que percebam a importância de ter contas certas, de não ter dívida exagerada, de realizar reformas estruturais para tornar as suas economias mais competitivas. Ou seja, é necessário que, de parte a parte, haja uma negociação que produza um resultado útil.

Mas, apesar de tudo, tem de se reconhecer que, sem uma liderança extraordinária, foram dados os passos certos para preservar o euro; os passos iniciais para uma união bancária; os passos iniciais para que o BCE coordene o sistema europeu na área monetária; os passos centrais para que haja uma maior monitorização das contas nacionais; para criar uma cultura de redução do défice e de liquidação das dívidas; para legitimar a importância do euro para o funcionamento estável das economias da zona euro; foram dados passos fundamentais na criação de mecanismos de recurso para agir em situações de crise. Em suma, foram dados passos para evitar que a crise financeira de 2008 levasse à desintegração de fortes segmentos da vida europeia, designadamente o euro, ou que muitos países fossem obrigados a sair do euro com as catastróficas consequências que isso significaria para as suas economias.

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Se tivessem de sair, era o sistema que cairia, como acabou por ser reconhecido em Berlim.
Esses passos foram dados sempre em reacção ao abismo. E foram dados no último momento e com timidez suficiente para não ter surgido o desenho de um modelo global. Alguma coisa mais pode e deve ser feita, mas temos de ter a noção que só pode ser feita quando todos estiverem de acordo e, para que todos estejam de acordo, é preciso que haja compromissos de parte a parte. A negociação desse contrato é absolutamente fundamental para dar um novo fôlego à vida europeia.

Mas tem duas faces: a face da economia alemã e do respeito pela disciplina financeira…
É muito pouco credível defender economias sociais avançadas da Europa sem querer obter recursos para as financiar. E julgar que os recursos para as financiar vêm das economias ricas do todo europeu, como se se tratasse de uma transferência gratuita de rendimentos que alimentaria uma faixa que descrê de si própria e da sua capacidade para se modernizar. Assim como também a Alemanha deve ter uma visão mais europeia em relação à sua própria responsabilidade perante a União Europeia. Porque, para liderar, é preciso ter a noção do todo. Não se pode querer liderar pensando só em si mesmo.

Não vale a pena enumerar o que é o Reino Unido na Europa — uma economia poderosa, um poder militar assinalável, as melhores universidades, uma visão aberta do mundo. O que é que, em termos geopolíticos, a sua saída pode trazer aos próprios equilíbrios internos da União Europeia?
Não sei se a saída é definitiva. E não sei ainda a modalidade final de que se vai revestir. Há dois países que têm articulações interessantes com a União Europeia: a Suíça e a Noruega.

Não são países comparáveis com o Reino Unido.

Sim, não creio que o modelo a adoptar pudesse ser igual. De qualquer maneira, manter o Reino Unido associado às políticas de segurança e de defesa e às relações externas do espaço europeu parece-me absolutamente essencial. Depois, manter tudo o que for possível da liberdade de circulação de mercadorias e do investimento. Quanto à liberdade de circulação de pessoas, há vantagens de parte a parte. O Reino Unido também não pode esquecer o seu desempenho europeu nas áreas financeira, bancária, seguradora, nos serviços, nas questões de defesa e segurança. Também não pode alienar por completo o seu papel de intermediação entre a Europa e a Ásia e entre a Europa e os EUA, através das suas praças financeiras, das suas firmas de consulting, da sua capacidade para gerir como ninguém essas articulações.

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Manifestante anti-"Brexit" num protesto no ia 1 de Abril em Londres Alkis Konstantinidis/Reuters

Mas como foi possível chegar aqui?
Creio que o que aconteceu no Reino Unido é um exemplo terrível de como a simplificação dos debates pode levar a opções incorrectas. Vejo aí uma influência enorme da imprensa tablóide e das redes sociais. Não vejo que essa cura possa ser feita de um dia para o outro, mas temos de reconhecer que aqueles que desencadearam esse tipo de procedimentos também rapidamente desapareceram, o que revela que a sua consistência não era tão duradoira como possamos imaginar.

Mas os danos ficaram.
Os danos estão para ficar. Ainda não são definitivos e podem ser corrigidos. Custa-me ver o Reino Unido na posição em que se encontra ou a argumentação das suas lideranças políticas. Um país que teve no mundo a importância que teve e que nos habituou a ter, sobre todos os debates políticos, ideias de enorme profundidade, está agora a percorrer um caminho que o mundo não entende e que parece que os próprios britânicos começam a também não entender.

Disse que o Reino Unido era uma ponte entre os dois lados do Atlântico. Talvez uma das crises mais profundas e de desfecho mais incerto que a Europa atravessa neste momento é a crise da relação transatlântica, muito acentuada pelo actual Presidente, que, como já disse, mudou radicalmente a política europeia que os EUA definiram desde o pós-guerra, para uma política de apoio activo aos factores de desintegração. A Europa está muito longe de estar preparada para viver sem os EUA?
A relação transatlântica não vai ser quebrada pelo actual Presidente dos Estados Unidos. Do ponto de vista da relação das empresas, das sociedades e das culturas e até das relações das organizações institucionais mais relevantes, ela permanece. E há que ter em atenção o cuidado da Câmara dos Representantes, com a sua nova composição, em mostrar que é assim e que será cada vez mais assim. Vamos caminhar para uma situação em que, também nos Estados Unidos, vai haver reversão de valores, limitação de danos e a procura do restabelecimento de novas pontes. Mesmo em relação à própria NATO, já há alguns sinais positivos. Mas a verdade é que é muito difícil defender a relação transatlântica junto das opiniões públicas quando a liderança cimeira dos EUA faz da contestação a esse objectivo um dos pontos fundamentais da sua argumentação eleitoral interna. Estamos a atravessar um mau bocado, desse ponto de vista, mas a situação não vai ficar fixada aí, nem se vai agravar.

Mas, entretanto, do lado europeu há um relativo desgaste.
A ideia de que os EUA teriam melhores relações com a Europa, seleccionado os seus aliados europeus entre aqueles cujos governos são democracias iliberais e que têm sobre a própria arquitectura europeia uma noção muito naive, seria um erro perigosíssimo. A ideia de que a desestruturação da Europa Ocidental possa ser algo de benéfico para os EUA, não parece muito saudável. De resto, os EUA pela circunstância de quererem estar a concentrar a sua política de segurança na contenção da China, não podem nem devem ignorar que, à volta da Europa, continua muito vivo um estado de turbulência. Nada restou do que era a esperança da Primavera Árabe, os factores de radicalismo permanecem, a mudança de orientação da Rússia, a perda da Turquia como aliado estável, o descontrolo da relação de equilíbrio no médio Oriente — tudo isso parece potencialmente muito perigoso.

Apesar de tudo, já vem do Presidente Obama essa correcção da política externa norte-americana em direcção a maior atenção ao Pacífico.
Sim, mas o Presidente Obama não era antagonista em relação à Europa, embora possamos considerar que era algo céptico ou algo agnóstico. O Presidente Trump, com o conceito de “America First”, veio criar um campo de guerra económica com os seus aliados que é perigosíssimo. Num mundo em que a própria América sente que nascem novos rivais, não será muito avisado estar a criar artificialmente mais um rival, com o paradoxo de esse terceiro rival ser aquele que foi o mais estável dos seus aliados.

Mas a China é obviamente o elefante na sala, se posso dizer assim, para os EUA e para a União Europeia.
É isso que explica, porventura, algumas das mensagens de sedução dirigidas à Rússia pelo Presidente Trump, querendo simetrizar o que fez Nixon com a China em relação à União Soviética [1972], fazendo agora com a Rússia a mesma coisa em relação à China. Só que essa mudança também não funcionou. E não se percebe qual é o horizonte completo da nova manobra americana da actual presidência, porque a alienação do que tinha sido realizado para moderar o Irão como potência nuclear é algo muito questionável. Depois, assistimos a uma política no Extremo-Oriente que passa por uma aventura negocial extremamente imponderável — as conversações com o Presidente da Coreia do Norte. Assistimos a uma flagelação da NATO como aliança militar, ao incitamento ao desmantelamento de todas as estruturas multilaterais na Ásia ou na América Latina, ao ataque à Organização Mundial do Comércio, às dúvidas permanentes sobre os acordos de contenção do aquecimento global — tudo isso é surpreendente.

Mas tem um impacte internacional imenso porque os EUA são ainda a superpotência mundial.
Mas também têm tido alguns dissabores. Trump fez tudo o que pôde para elevar tarifas e para fazer crescer o mercado interno, mas a América continua com um défice comercial gigantesco

Que, por sinal, aumentou.
É uma política que tem muito de vocal, mas que ignora o funcionamento objectivo do comércio internacional, para estar a apresentar tão fracos resultados.

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"O Reino Unido está a percorrer um caminho que o mundo não entende"

Mencionou a NATO. Há anos que a Europa diz que vai dotar-se de alguma autonomia no domínio da defesa e segurança. É uma longa história sem grandes resultados. Agora, com a turbulência na aliança transatlântica, a questão coloca-se com mais ênfase. Foram dados alguns passos institucionais. A segurança europeia continua na dependência quase total da Aliança Atlântica?
Sim, apesar de alguns esforços. A verdade é que os exércitos europeus, somados, têm grandes custos mas a sua eficácia operacional é muito pequena. Há um caminho para trabalhar nesse domínio, não em ruptura com o aliado atlântico, mas pelo aprofundamento de uma reforma da totalidade da estrutura. E tudo o que possa ser feito em matéria de desenvolvimento científico e técnico com incidência nessa área, tudo o que possa ser feito em matéria de procurement para os equipamentos tecnologicamente mais exigentes, como o avião de combate europeu, tudo o que possa ser feito para projectar forças com significado, ou como a proposta alemã para a construção de um porta-aviões europeu, são ideias com alcance e significado. Bem como a ideia de que a própria capacidade nuclear francesa e o voto da França no Conselho de Segurança das Nações Unidas possam ser postos ao serviço da política europeia com uma articulação clara de mandatos…

Apesar de a Europa não ter, longe disso, uma política externa comum que possa sustentar, por exemplo, esse lugar permanente?
Mas tem que ter. Se não, não é Europa. Temos de definir muito bem qual é o caminho que queremos. Queremos continuar a fingir a Europa com um falso governo europeu, um falso parlamento europeu, uma falsa política externa europeia? Sempre cobertos por grandes frases mas despidos de conteúdo? Ou queremos dar um passo acima para dotar a Europa dos meios indispensáveis ao seu papel na cena internacional, em competição com os EUA, com a China e, porventura, com a Índia e com a Rússia, que são os grandes factores emergentes de uma nova arquitectura internacional? Julgar que se constrói a Europa apenas com 1% dos impostos sobre o PIB europeu é curto.

Mas ainda estamos aí. Vê sinais de mudança?
A pressão dos factos pode e deve obrigar à mudança. E temos vindo a assistir a uma pressão externa e interna dos factos como, porventura, nunca se tinha visto até hoje. E essa pressão, que tem sido muito desestabilizadora, pode levar a uma tomada de decisão sobre os meios que devem ser adoptados para dotar a Europa de uma capacidade de actuação efectiva no mundo de hoje. Isso é absolutamente essencial. Caso contrário, o caminho da Europa vai ser o do declínio, da perturbação interna e da ingerência externa.

A propósito da pressão dos factos, verifica-se hoje em algumas capitais europeias algum sobressalto em relação ao investimento chinês nos países europeus. Até há bem pouco tempo, a relação com a China era vista do ponto de vista estritamente comercial. Agora, criam-se mecanismos de screening em relação ao investimento chinês, por exemplo, ou defendem-se “campeões europeus” para ombrear com os gigantes chineses. Como é que vê esta mudança? É alimentada por um certo proteccionismo?
Num mundo em que os EUA e a China, cada um de seu modo, reforçam o proteccionismo ou, no caso da China, manifestam uma nova ambição para as suas companhias estatais sem reciprocidade na sua própria economia, há que definir também alguns mecanismos de segurança. No caso das áreas tecnológicas mais sensíveis, há que introduzir algum escrutínio. Em relação aos fluxos de investimento, há que ter consciência de qual é o desenho global que cada um desses instrumentos desempenha num plano muito bem centralizado por parte das autoridades chinesas. Portanto, não se pode tratar a China e o investimento chinês como se trata o investimento italiano. É preciso ter mais cautela. Tanto mais que se trata de uma economia já com incorporação muito forte de tecnologias de ponta; uma economia que não releva inteira transparência sobre os seus operadores nem sobre a titularidade das suas companhias; e um país que perfila um desenho estratégico como potência global para o dia em que a sua economia vier a ultrapassar a economia europeia mas também a economia dos Estados Unidos. Um país que se prepara para fazer da Rússia um protectorado. Portanto, é necessário ter alguns instrumentos de análise e também algumas contramedidas, ou seja, pugnar por entrar no mercado chinês, pugnar para que a China pratique actos de reciprocidade, pugnar para que a China tenha mais transparência no balanço e nas contas das suas empresas e no funcionamento da sua economia. Isso é importante.

O caso da Huawei parece-lhe um exemplo que justifica essas medidas?
Parece-me um exemplo que exige reciprocidade, e antes disso, parece-me um exemplo que exige estudo e que exige a capacidade de conhecer em todo o pormenor o alcance desses sofisticados desenvolvimentos electrónicos que, tendo obtido transferências de tecnologia do Ocidente por todos os meios, a economia chinesa conseguiu realizar.

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A NATO foi fundada há 70 anos Christian Hartmann/Reuters

No quadro europeu, Portugal parece bastante imune ao contágio populista e nacionalista, com um sistema partidário que revela uma resistência verdadeiramente notável, quando comparado com as tendências para a fragmentação que se manifestam um pouco por toda a Europa. Como é que isso se justifica? Ou devemos perceber que não vamos ficar imunes?
O que descreve, assim é. Porquê? Porventura, porque somos pequenos, porventura, porque somos, na nossa composição social, um país com pouca imigração oriunda de zonas com valores profundamente antagónicos. E somos um país tão conservador que torna impossível aos radicais singrar com uma vida fácil. Somos um país onde a nossa situação de migrantes no mundo nos aconselha a não reconhecer grande mérito a quem os persiga. Somos um país que, pela diversidade da nossa experiência histórica e dos contactos abertos pela língua, tem uma experiência multicultural forte. Somos também um país onde, apesar da existência de condições de pobreza acentuada em certos campos, tem redes de solidariedade social, familiar e de intervenção solidária que mitigam abundantemente as linhas de fractura. E temos também a consciência de que, não copiando o que há de mau no resto do mundo, podemos preservar alguma diferença que nos garanta aquela paz que nos poupa às guerras dos outros.

A Espanha teve um processo de democratização e europeização igual ao nosso ou, pelo menos, simultâneo. Registou um grande sucesso económico e social. E está a braços hoje com problemas grandes, não apenas por causa do nacionalismo catalão, mas por causa da emergência de um partido que tenta representar o velho nacionalismo espanhol.
Essa instabilidade espanhola, que não é querida por Portugal, é também um factor que reforça nos portugueses o sentido de responsabilidade para demonstrar uma conduta diferente.

Houve este atentado terrível na Nova Zelândia, traduzindo o ódio contra os outros da chamada civilização branca, ocidental e cristã. Houve, só nos últimos dias, vários incidentes de violência terrorista de diferentes origens em território europeu. Este medo e este confronto cultural que vem ao de cima é também um factor de grande instabilidade das nossas sociedades democráticas?
Sim. E estarão mais protegidas contra esse tipo de violência aquelas sociedades que, há mais séculos, se habituaram a lidar com as diferenças. É uma sabedoria que funciona como garantia de segurança e de harmonia e que tem um valor indiscutível. Porque, se reparar, é em países onde o contacto com civilizações diferentes ou não existe, ou chegou muito tarde ou só chegou por via dos imigrantes, que acontecem essas situações extremas.

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