“Os populistas não precisam de ganhar para causar grandes estragos”
O Governo de Itália trouxe um perigo novo para a União Europeia: um modelo de cooperação entre radicais de direita e esquerda, que pode ser usado no Parlamento Europeu para desmantelar as instituições por dentro, diz Mark Leonard, director do centro de estudos European Council on Foreign Relations.
Uma maioria descontente que se vê como minoria costumava abster-se, mas nestas eleições europeias prevê-se que vá votar e opte por partidos anti-europeus, diz Mark Leonard, co-fundador e director do primeiro centro de estudos pan-europeu, que esteve em Lisboa no final de Março para uma conferência na Fundação Calouste Gulbenkian.
Como está a Europa na véspera das eleições para o Parlamento Europeu?
É uma Europa que se está a fragmentar em tribos cada vez mais pequenas. Primeiro a crise económica separou Norte e Sul, a isso sobrepôs-se a invasão da Crimeia, que dividiu Leste e Oeste, e a crise migratória ainda que ainda dividiu mais. Isto levou a uma paralisia entre os Governos europeus, e as eleições europeias acontecem no fim de um período profundo de crise, com vários partidos que apoiam a integração europeia tradicional sob enorme pressão.
É provável que as eleições acelerem este processo de transformação política a nível nacional e levem a uma União Europeia ainda mais fragmentada. E isto acontece numa altura em que o sistema político em volta da União Europeia também está numa mudança muito profunda. Imagino que a grande questão é se a destruição deste ambiente vai unir mais a Europa ou vai acelerar este processo de fragmentação interna dos últimos dez anos. Espero que reverta e que os europeus consigam alguma unidade face dos desafios externos. Mas ainda é demasiado cedo para dizer.
Um exemplo poderia ser o “Brexit”? Parece ter conseguido uma unidade europeia, ainda que os países tenham interesses e preocupações diferentes...
Sim, o “Brexit” tem sido no curto prazo muito bom para a unidade europeia. Primeiro, deu oportunidade às instituições políticas em Bruxelas de retomarem o controlo - é a primeira crise em que estão a controlar, o que não aconteceu na crise do euro, que foi sobretudo acção intergovernamental, nem em nenhuma das crises de política externa. Segundo, mudou totalmente a opinião pública em muitos países, antes do “Brexit”, falava-se de “Grexit” [saída da Grécia na sequência da crise do euro], “Frexit” [saída de França], “Nexit” [saída da Holanda], e agora em todos os Estados-membros, sem excepção, os níveis de apoio à pertença à União Europeia estão tão altos como não estavam há algum tempo.
Há alguns exemplos de mudanças marcadas?
Até em países que estão muito incomodados com alguns aspectos da União Europeia os partidos populistas mudaram, e em vez de serem a favor de sair do euro ou da UE, agora têm uma ideia de reformar a Europa para respeitar a soberania nacional. A Frente Nacional defendia que a França devia sair do euro e agora já não diz isso. Em Itália, a Liga Norte e o 5 Estrelas criticam muita coisa na Europa mas já mudaram também a sua posição sobre o euro.
Agora, o que acontece a seguir é menos previsível. Porque se houver um acordo com Theresa May será mais difícil manter essa unidade na próxima ronda de discussões. Numa negociação sobre comércio, os interesses dos Estados-membros já não serão tão alinhados.
E ninguém sabe também o que vai acontecer no próprio Reino Unido, não é?
Um dos meus colegas no European Council on Foreign Relations que tem a pasta do “Brexit” diz que fazer previsões sobre o “Brexit” tem sido como fazer previsões sobre o estado do tempo inglês. Não se sabe como vai estar, mas sabe-se que não vai estar bom.
Defende que os partidos populistas vão ganhar mesmo se conseguirem apenas um terço dos lugares do Parlamento Europeu. Porquê?
Muitos destes partidos estão a mudar a política a nível nacional e poderão fazê-lo a nível europeu. Por exemplo, na política britânica nas últimas décadas pode dizer-se que os partidos mais influentes foram o UKIP [Partido para a Independência do Reino Unido], que elegeu precisamente um deputado em 650, e o Partido Social Democrata que foi uma cisão do Partido Trabalhista e nunca teve mais de 25 entre os 650. Mas o impacto que tiveram foi o modo como mudaram respectivamente o Partido Conservador e o Partido Trabalhista.
Isso não será um erro do lado dos partidos que decidiram mudar, ou seja, do Partido Trabalhista e do Conservador, que caíram numa armadilha?
Não penso que tenha sido uma armadilha. O New Labour de Tony Blair foi uma reacção ao medo de que o Labour pudesse desaparecer, e o UKIP assustou David Cameron, levando-o a convocar o referendo, que levou à possibilidade do “Brexit”. Por isso é possível ter um grande efeito na política sem chegar a primeiro-ministro ou ser o maior partido.
Mas há outro modo: no caso das europeias, com um terço dos deputados do Parlamento Europeu consegue-se bloquear uma série de medidas, como acordos comerciais ou procedimentos de estado de direito contra a Hungria ou Polónia, pode-se ter um papel importante na selecção da próxima Comissão Europeia, ter comissários... penso que vão ter um grande impacto.
O objectivo deles é criar uma federação dos vários partidos anti-establishment da esquerda com os anti-imigração da direita, para tentar transformar e desmantelar grande parte das instituições da União Europeia por dentro, e as eleições europeias são a plataforma para isso.
Mas já tentaram fazê-lo numa aliança dos populistas de direita e direita radical nas últimas eleições e não conseguiram. O que mudou agora?
Muitos dos partidos e das ideias não são novos, mas há coisas que mudaram. Uma foi a formação do actual Governo italiano, que criou um modelo para união destes dois tipos de populismo, que teriam ficado cada um na sua ala, e não teriam sido muito eficazes a trabalhar juntos.
E Viktor Orbán, e Matteo Salvini, estão a tentar levar isto um passo em frente com a ajuda de Steve Bannon. Pode não resultar, mas é um projecto político muito mais ameaçador do que os anteriores, em que havia vários tipos de populistas mas tão divididos que não conseguiam trabalhar juntos.
A segunda coisa que mudou é o facto de tantas pessoas em tantos países estarem a querer mudança. Nas nossas sondagens uma pergunta reveladora foi: “acha que o sistema, nacional e europeu, funciona ou não?” Em quase todos os países há uma minoria substancial e às vezes mesmo uma maioria que pensa que o sistema não funciona. E estas pessoas não estão a afastar-se do processo político: no passado, tenderiam simplesmente a não votar, e agora pretendem votar.
São pessoas que se sentem excluídas?
Em França, apenas uma em cada dez pessoas acha que o sistema funciona, tanto no país como na Europa. Isso explica o apoio aos Coletes Amarelos. Há uma sensação de que o compromisso de que se trabalhassem, seguissem as regras, os filhos teriam um futuro melhor, falhou: muitos acham que isto já não funciona. O sistema económico não é justo, não confiam nos media, há um sentimento muito alargado de que os sistemas políticos não representam pessoas como eles.
Muitos dos partidos mainstream deixaram muita gente para trás - os de esquerda não representam os antigos trabalhadores industriais, por isso são vistos como representantes de minorias étnicas, indústrias criativas, funcionários públicos; e os partidos à direita já não representam os mais conservadores rurais, tentaram agradar a mais pessoas apoiando coisas como casamento gay e quiseram ser mais progressistas, e aproximaram-se das grandes empresas... e esses são os grupos a que os novos partidos apelam. Esses eleitores costumavam ver-se como uma maioria e agora têm medo de se tornar uma minoria odiada nos seus próprios países, e usam métodos que as minorias têm utilizado para se defender, dando origem ao fenómeno da “maioria ameaçada”. E isso tem sido um tema muito poderoso para estes novos partidos “minarem”.
Às vezes é um pouco frustrante ver como as forças não extremistas reagem a estes partidos, caindo na agenda deles.
É interessante, porque os estrategas políticos tentam demasiadas vezes lutar por causas perdidas, e muitos partem do princípio de que em 2015 houve um momento de cataclismo, o mundo ficou diferente depois da crise da imigração e as eleições vão ser um referendo à política de imigração: em muitas campanhas esse é o foco central.
Mas a imigração não é a principal preocupação da maioria dos cidadãos...
Para a maioria das pessoas, na maioria dos países, a imigração é um tópico importante, mas não é o mais importante ou dominante, e há muitos outros com que se preocupam. Há pessoas que se preocupam com o radicalismo islâmico (o mesmo número, mas outras pessoas), a economia, um número surpreendentemente alto teme o nacionalismo, também as alterações climáticas e o ambiente, em especial os mais jovens, e em alguns países a política externa - na Polónia é a Rússia. A imigração já não é tão importante como era, e já não é tão polarizador porque já não há partidos políticos a favor de fronteiras abertas.
Há 14 anos, escreveu um livro em que falava da UE como um exemplo que poderia influenciar o mundo inteiro. Como vê agora o que escreveu na altura?
O livro era uma tentativa de descrever a UE e celebrá-la como é, uma história de amor com um projecto político que era algo totalmente novo. Combinava ter escala nas coisas onde era preciso escala, um enorme mercado, regras ambientais, por exemplo, e ao mesmo tempo deixava decisões mais perto das pessoas ao manter o Estado-nação, mas permitindo-nos escapar aos erros do passado europeu. Na altura, esperava que se espalhasse de várias maneiras: com países a juntar-se, com transformações nos vizinhos, na altura havia as revoluções coloridas, havia outras organizações de países, a ASEAN, a Liga Árabe, etc, e pensei que podia haver um mundo com mais alianças destas.
Tudo o que elogiei no projecto europeu - a união, estado de Direito, o modo de lidar com disputas, de dividir o poder militar - são características que se mantém maravilhosas, únicas e interessantes. Onde mudei o que penso: primeiro, estou muito mais consciente de quão vulneráveis são estas coisas, precisamos de as defender e não as tomar como certas; segundo, à escala global é pouco provável que muitos outros países sigam o exemplo europeu. O que vejo agora não é um modelo universal, mas sim algo excepcional, frágil, e que precisa de ser defendido - e isso foi uma grande mudança psicológica.