Comissão de Transparência Opaca
Os deputados deliberadamente empurraram com a barriga esta questão fundamental em vez de deixarem claro desde já que devíamos ter, para cada deputado e cada ano, a lista de interesses e rendimentos disponíveis na Internet
A palavra inglesa que designa a acumulação de duas atividades profissionais – na política mas não só – é “moonlighting”. A referência à luz da lua advém de muitos destes segundos trabalhos serem realizados em horário pós-laboral. No caso dos políticos, é “moonlighting”, mas do lado escuro. O PSD introduziu alterações de última hora nas propostas da Comissão de Transparência, que o PS deixou passar com uma sonsa abstenção, abrindo a porta a que os deputados possam acumular funções com posições de sócios em sociedades de advogados envolvidas em processos a favor ou contra o Estado. As alterações repentinas também protegem as ligações perigosas ao sector financeiro. Segundo o PÚBLICO, o deputado Álvaro Batista do PSD justificou a posição do seu partido dizendo “A maior parte das sociedades de advogados são pequenas, dependem do sócio para se manterem, e às vezes até do seu desempenho profissional”. A frase é correta, mas infelizmente incompleta. Álvaro Batista devia ter acrescentado que as sociedades de advogados dependem de ter o sócio em cargos públicos para se manterem. Existem vários estudos que mostram que as empresas (todas, não só as sociedades de advogados) que têm políticos nos seus quadros beneficiam dessas ligações, até em democracias estabelecidas como a França e a Alemanha. Não há razão para Portugal ser diferente. Acresce que na Alemanha e em Itália os deputados com maior rendimento extra-parlamentar são os advogados. Como esta profissão está no cerne da atividade parlamentar, que é fazer leis, há razões para nos preocuparmos especialmente com ela, em nome de uma democracia saudável.
Será que a acumulação de funções de deputado com outras atividades é sempre má? Não necessariamente. Por um lado, permite aos políticos a manutenção de uma profissão para a qual poderão regressar terminado o mandato, o que até pode ser visto como um garante de independência. Por outro, é uma forma de guardar um contacto com a realidade, o que permitir escrever leis mais adequadas. Mas tem de ser cuidadosamente regulada, devido aos conflitos de interesses. E o escrutínio deve ser facilitado: a informação recolhida tem de estar facilmente acessível.
Sinais claros de esturro são empregos extra com remunerações chorudas, posições surgidas no decorrer do exercício de funções, ligações com empresas ou lobbies diretamente influenciados por legislação em discussão. A Transparência Internacional publicou em 2018 um relatório sobre os rendimentos dos membros do Parlamento Europeu. Cerca de 60% dos deputados acumula funções com posições exteriores ao parlamento. Metade destas são pagas. Há 49 deputados que começaram uma atividade paga depois do início do mandato. Existem três deputados com cargos pagos em lóbis presentes no registo europeu de lóbis. Este escrutínio é possível porque as declarações de interesses e rendimento dos deputados estão diretamente acessíveis no site do Parlamento Europeu. À distância de um clique, qualquer uma de nós pode descarregar um documento PDF com o que cada deputado europeu ganha em cada ano e que outras funções exerce.
Já em Portugal, a consulta das declarações de rendimentos é teoricamente possível, mas na prática envolve um processo complicado que passa por deslocar-se presencialmente ao Tribunal Constitucional, consultar as declarações em papel, tomar notas apenas recorrendo a papel e caneta. Mais: existe um limite diário de declarações que se pode consultar. A revista Sábado passou mais de um mês do verão de 2018 para conseguir recolher informação sobre 371 titulares de cargos públicos. Com um sistema semelhante ao do Parlamento Europeu, as declarações de 371 políticos demorariam talvez um par de horas a obter. O Parlamento Europeu não é o único a disponibilizar esta informação online. Um artigo de 2012 de Benny Geys e Karsten Mause, intitulado Moonlighting Politicians: A Survey and Research Agenda, publicado no Journal of Legislative Studies, foi à procura de todos os países com acesso “fácil e online” a informação sobre rendimentos e interesses individuais de políticos. E encontrou vários: Áustria, Dinamarca, Finlândia, Alemanha, Irlanda, Holanda, Nova Zelândia, Noruega, África do Sul, Suíça, Reino Unido. Neste último, os políticos são obrigados a declarar os empregos dos familiares diretos (filhas, filhos, cônjuges) e essa informação também é pública. O que teria poupado algumas horas de trabalho aos jornalistas que foram, nas últimas semanas, destapando as teias familiares no governo.
A Comissão propôs a criação de uma Entidade da Transparência, a funcionar na órbita do Tribunal Constitucional, que vai ter competências de fiscalização das declarações de rendimentos dos deputados e também decidir como publicitará as declarações e que dados poderão ser públicos. Ora aí está: verbo “publicitar”, adjetivo “público”. Duas palavras da mesma família, que os deputados da Comissão de Transparência desconhecem. Por isso, deliberadamente empurraram com a barriga esta questão fundamental em vez de deixarem claro desde já que devíamos ter, para cada deputado e cada ano, a lista de interesses e rendimentos disponíveis na Internet. Não podemos contentar-nos com menos do que isto. Se estavam com falta de inspiração, bastava consultar o site do Parlamento Europeu. Ou pegar na lista acima de países com acesso “fácil e online”.
Susana Peralta
Professora de Economia da Nova SBE