O Exército e a “rua” disputam o controlo da sucessão de Bouteflika

A questão crucial na Argélia é saber quem vai pilotar a transição. Os militares perceberam que, para salvar o sistema, é preciso reformá-lo.

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MOHAMED MESSARA/EPA

Abdelaziz Bouteflika é o primeiro presidente argelino a ser deposto pela pressão popular. Resignou na terça-feira à noite mas, na realidade, a sua morte política remonta a 22 de Fevereiro, dia da primeira mega-manifestação contra a sua quinta candidatura, exigindo a sua destituição e o fim do sistema autoritário. Se aspirava a morrer no poder, Bouteflika, uma figura que se confunde com a História da Argélia independente, chega ao fim sem honra nem glória, como um decrépito fantasma do passado.

O Exército foi o instrumento da destituição ao assumir a vontade expressa pelos manifestantes. Na terça-feira, fez um ultimato ao “clã presidencial”, que tentava assegurar o controlo da sucessão e da transição. Horas depois, Bouteflika apresentava a demissão ao presidente do Conselho Constitucional. As imagens foram passadas na televisão estatal para os argelinos acreditarem.

A regra-base do sistema político argelino era simples: os militares não governam mas são eles quem designa ou afasta o presidente. Desta vez, há uma mudança fundamental: estão em cena dois actores, a população e Exército. Neste momento, parecem colaborar. O chefe do estado-maior, general Gaid Salah, legitimou a decisão de afastar Bouteflika pela “vontade popular”. Mas o desfecho é uma absoluta incógnita, agravada pelo vazio institucional, pela fragilidade das forças de oposição e pela ausência de personalidades políticas credíveis, o que torna problemática a imediata realização de eleições. O primeiro problema é exactamente este: quem poderá organizar eleições credíveis?

Transições

Os manifestantes têm pedido a eleição de uma Assembleia Constituinte, algo que exige tempo. Quem governaria interinamente até lá? Nos termos constitucionais, a presidência interina seria exercida pelo presidente do Conselho da Nação (senado), Abdelkader Bensalah, por um período máximo de 90 dias até à nova eleição presidencial. Acontece que Bensalah é uma figura desprestigiada e impopular. “Os argelinos não querem correr o risco de serem dirigidos por um clone de Bouteflika”, diz um analista.

Por outro lado, Bouteflika - ou o irmão por ele - designou um novo governo, presidido por Noureddin Bedoui, que não é reconhecido pelos militares e, muito menos, pelos manifestantes. Para além do mais, Bedoui é acusado de “falsificar” eleições quando era ministro do Interior.

Há personalidades da oposição que defendem a realização de eleições o mais rapidamente possível para evitar o “apodrecimento” da situação e instaurar um poder com um mínimo de legitimidade. Mas estão os partidos preparados?

Outras apontam a necessidade de um período transitório mais longo, a fim de permitia a reorganização da cena política e a emergência de novas figuras saídas da contestação. Tal transição poderia ser assegurada por uma personalidade de independente ou por um colectivo.

O advogado Mustapha Bouchachi, uma figura respeitada pelos manifestantes, defende esta última hipótese. “Pode haver um presidente (individual) ou um grupo (instância presidencial) e um governo formado após discussões alargadas que tranquilize os argelinos”. Mas o seu papel “não será governar mas organizar eleições para que o povo seja ouvido e veja as suas reivindicações satisfeitas”.

Que é o piloto?

A questão crucial é saber “quem vai pilotar a transição”, declara o analista argelino Hasni Abidi. “De momento, a rua é o primeiro ‘decisor’. Mas a vida política da rua é limitada. As manifestações vão continuar, são a única forma de pesar sobre a transição: a pressão popular é um dado fundamental da equação.”

Note-se que os militares não apoiam as várias propostas de transição, pedindo a aplicação literal da Constituição em vigor.

É uma discussão que mal começou. Interroga-se Pierre Vermeren, especialista francês no Magrebe: “É necessário manter o mesmo quadro constitucional? Cabe a um novo parlamento e ao novo presidente organizar a sua reforma? O Exército conservará o controlo da selecção dos candidatos? Há muitas incertezas.”

O “sistema” que os manifestantes denunciam tem fundas ramificações na sociedade. A imprensa denuncia uma luta surda entre “clãs”. Mais difícil é identifica-los. Le Pouvoir, como lhe chamam os argelinos, é opaco e não se limita à cúpula do Estado. É um poder disseminado e implantado há mais de cinco décadas. A transparência é uma meta longínqua.

O antigo primeiro-ministro Ali Benflis, que desafiou Bouteflika em duas eleições, denuncia as “forças extra-constitucionais”. Explica que “o antigo regime tal como o conhecemos já não existe” mas aquelas forças permanecem activas. “A mais alta prioridade política é a sua neutralização.”

Primeiro ajuste de contas: o Exército acaba de apoiar a Justiça numa espécie de operação “Mãos Limpas” contra empresários que fizeram fortuna à custa do Estado. O ex-presidente dos patrões, Ali Haddad, foi detido no domingo quando tentava passar para a Tunísia. Dezenas de “oligarcas” foram objecto de uma interdição de abandonar o país. O caso Haddad não é politicamente inocente. É uma figura muito ligada a Said Bouteflika e que fez uma das maiores fortunas do país durante esta presidência.

De novo, o Exército

Voltemos ao general Gaid Salah. Ele não se representa a si mesmo. Representa o Exército. E esta funda a sua legitimidade na guerra da independência. Pessoalmente, foi uma criação de Bouteflika, que lhe entregou, em vésperas de passar à reforma, em 2004, o comando do estado-maior para tirar de cena o poderoso general Mohamed Lamari. Gaid Salah foi até Março um fiel cliente de Bouteflika.

A sua ruptura, mais do que oportunismo pessoal, reflecte um cálculo do Exército, a coluna vertebral do regime. A revolta maciça da população pôs em causa a sua legitimidade. O Exército recusou afundar-se com um Presidente moribundo e passou a defender a reforma do regime para que ele sobreviva. É uma figura conhecida na História.

Ironicamente, a revolta dos jovens tornou o papel do Exército de novo decisivo. As manifestações não hostilizam a instituição militar. Exigem que ela ajude a implantar um poder civil democrático e que, portanto, abdique da prerrogativa de escolher e destituir presidentes. A destituição de Bouteflika deveria encerrar essa tradição. As manifestações de sexta-feira serão um termómetro.

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