A revolução 4.0 traz promessas e perigos
Robôs, inteligência artificial, análise de dados, aplicações móveis – na quarta revolução industrial, as empresas estão a transformar-se. E, com elas, transforma-se também a natureza do trabalho e do consumo.
A 5 de Janeiro de 1914, o empresário americano Henry Ford – criador de um método de produção que tornava o trabalho dos empregados quase robótico, mas muito eficaz – aumentou drasticamente o salário dos funcionários. A medida tornou-se célebre nos livros de história e gestão. O aumento não pretendia apenas evitar que os empregados faltassem ao trabalho ou se despedissem de um emprego monótono. Tinha também o poderoso efeito secundário de dar aos funcionários rendimento para comprarem os automóveis produzidos na fábrica em que eles próprios trabalhavam.
Um século volvido, há quem debata a possibilidade de um rendimento básico universal, em parte destinado aos que não encontram emprego por causa da automação e das tarefas que são cada vez mais feitas por robôs. Também há quem avance com a possibilidade de taxar o trabalho robótico. São medidas discutidas por académicos, por empresários e até afloradas por legisladores, incluindo no Parlamento Europeu. Estão, porém, muito longe de se transformarem em lei.
“O papel das pessoas e do trabalho nas empresas industriais, com crescentes níveis de automação, vai mudar. Tecnologias com alguma inteligência, com potencial para substituir as pessoas, trarão uma transformação grande, também ao nível das competências”, nota o académico Rui Soucasaux Sousa, professor na Católica Porto Business School.
No ano passado, um relatório da OCDE, uma organização de 36 países da qual Portugal faz parte, indicava que “as tarefas que a inteligência artificial e os robôs não conseguem fazer estão a diminuir rapidamente” e estimava que 14% dos empregos desaparecessem devido à automação, com outros 32% a sofrerem mudanças profundas. Em Portugal, um estudo apresentado pela Confederação Empresarial de Portugal concluiu que a robotização porá em risco 1,1 milhões de empregos na próxima década.
Soucasaux Sousa, no entanto, ressalva que nada acontece de um momento para o outro: “Os robôs já existem há muitos anos. É sempre mais a promessa do que a realidade. Este é um processo gradual.”
Revolução digital
Muito mudou desde as linhas de produção em série dos tempos de Ford. A Internet massificou-se e os robôs são hoje capazes de substituir alguns humanos. Há sensores que sabem a localização de veículos, mercadorias e até de componentes de produtos numa fábrica. Em boa parte graças aos smartphones, há uma abundância de dados sobre os utilizadores, bem como a capacidade computacional para os analisar em detalhe. Consumidores, fabricantes e prestadores de serviços estão conectados uns aos outros por aplicações móveis.
É uma vaga de mudanças a que se tem vindo a chamar a indústria 4.0 e que é descrita há anos como uma quarta revolução industrial, um termo popularizado mais recentemente pelo fundador do Fórum Económico Mundial, o engenheiro alemão Klaus Schwab.
No século XVIII, a invenção da máquina a vapor e de outra maquinaria deu origem à primeira revolução industrial. No século XIX e no início do século XX, a electricidade, o motor de combustão interna, o avanço das telecomunicações (com a disseminação do telégrafo e do telefone), e os métodos de produção em série trazidos por Ford elevaram a industrialização a um novo nível. Na década de 1980, o computador pessoal e a Internet trouxeram uma terceira transformação.
No século XXI, a tecnologia está, novamente, a transformar a forma como as empresas produzem, vendem e se relacionam com os clientes e umas com as outras, desta feita dando novas oportunidades aos países que viram as fábricas fugirem para regiões de mão-de-obra barata, mas também colocando novos desafios laborais e sociais.
Lino Fernandes, que foi durante 13 anos presidente da Agência de Inovação, uma entidade estatal que promove a troca de conhecimento entre a academia e a indústria, considera a automação “preocupante” para o número crescente de pessoas que poderá vir a ser afectado. “Os macroeconomistas e tecnólogos, baseados no conhecimento do passado, tendem a subestimar o problema, recomendando a actualização da formação. Mas é natural que a maioria das pessoas esteja assustada, até porque ouvem analistas e divulgadores a afirmarem que agora ainda vai ter um impacto mais forte e mais rápido, devido nomeadamente à inteligência artificial”, refere Fernandes. “Isto constitui também um problema político, que pode levar a uma situação de bloqueio do progresso científico e tecnológico”, caso “as camadas mais jovens, que se arrastam entre o desemprego e o contrato precário, encarem a automação como mais uma ameaça e comecem a dar ouvidos aos demagogos do neo-proteccionismo”.
Da fábrica ao consumidor
A disseminação de várias tecnologias de informação traz ainda novos modelos de negócio à indústria. Em vez de venderem apenas carros a comerciantes que depois os revendem ao público, os fabricantes de automóveis poderão vender serviços de mobilidade – é uma mudança de estratégia que algumas marcas já anunciaram. “Uma empresa industrial, em vez de vender um produto fixo, vende uma solução”, explica Rui Soucasaux Sousa. “A necessidade do cliente não é ter um carro, é mover-se de A para B. Esse valor é-lhe dado tradicionalmente com um produto físico. Mas o cliente pode passar a ter uma relação transaccional com o fabricante.”
Num outro exemplo, a Rolls Royce, que fabrica motores de aviões e de navios, vende um serviço que inclui o motor e a respectiva manutenção e peças de substituição, cobrando aos clientes de forma contínua, pelas horas de uso, e não por um produto acabado. Foi um conceito que a empresa já criou nos anos 1960 e que é um precursor dos muitos negócios por assinatura que proliferam na era digital – mas ao qual as tecnologias de informação permitiram maior eficácia: hoje, por exemplo, há algoritmos que conseguem antecipar quando um motor terá problemas.
Estes tipo de negócio tem um impacto directo na relação das empresas com os clientes e, também, na geografia em que estas podem decidir instalar as suas unidades de produção, explica Rui Sousa: “O que torna estes modelos interessantes do ponto de vista competitivo é que empresa tem de ter um relacionamento profundo com o cliente. E, como estes modelos requerem proximidade com o cliente, é difícil um fabricante na China oferecê-los.”
Por outro lado, tecnologias como a impressão 3D, que permite a criação rápida de protótipos e uma produção em pequena escala, ou o 3D Bonding, que reduz o número de etapas no fabrico de calçado, abrem portas a fábricas mais pequenas e onde o custo da mão-de-obra poderá ter menos peso.
“O impacto pode ser grande. E não é só pela automação dos processos existentes, mas em muitos casos pela inovação nos próprios processos de produção e pela alteração na composição dos produtos”, observa Lino Fernandes. “A diminuição do peso da mão-de-obra directa pode reduzir a competitividade dos países que a tinham ganho pelos baixos salários e, nesse sentido, pode haver retorno desses sectores.” Isto significa que países como Portugal “podem ter aqui uma nova oportunidade”.