O autocarro do SNS
Se se soltar o travão, com o motor desligado, rapidamente descemos em roda livre para um desastre de consequências imprevisíveis.
O nosso sistema de saúde (e, em particular, o Serviço Nacional de Saúde criado há 40 anos) assemelha-se a um grande autocarro de passageiros, que na subida de um trajeto íngreme, rumo a um futuro melhor, ficou sem gasolina. Os anteriores responsáveis do ministério, apercebendo-se da gravidade da situação, prontamente puxaram do travão de mão e adormeceram o motor. E antes que os passageiros começassem a entrar em pânico, decidiram que era melhor parar do que despistar e perder grande parte do percurso já realizado.
O anterior ministro da Saúde, conhecedor da máquina e temendo o desastre, foi hábil durante três anos, primeiro tranquilizando e depois adormecendo os passageiros. Sempre que acordavam e diziam que estavam no mesmo sítio, servia uma Lei de Bases, uns centros de referência, uns documentos estruturantes e outras bebidas frescas. Desde que não consumisse euros-combustível (que não tinha), ia zelando pela máquina que estava a seu cargo, esperando que o abastecimento europeu de 2020 chegasse ao depósito.
Entretanto, por decisão da administração, o condutor mudou. A recém-encartada, cheia de vontade de começar a andar, cedo afirmou que o problema não era da gasolina, que o que era preciso era eficiência, que chegávamos lá.
Voluntarista, cedo começou a carregar nos botões e comandos da consola do autocarro que tinha à sua frente, diferentes dos que tinha no carro da instrução.
Os hospitais não funcionam por causa das administrações que não fazem o que devem. Logo, rodam-se os conselhos de administração numa habitual dança das cadeiras, transportando as experiências e projetos piloto de instituição para instituição.
Não “consigo ter médicos nos serviços” (degradados), apesar de ter mais médicos do que nunca em formação (11.000 na faculdade e 12.000 nos internatos). Então obrigamos os “privilegiados que gastaram 100.000 euros em formação” a ficarem com contratos inalterados e desajustados, nos locais onde faltam (em todos, com maior incidência na região Sul). E quando essa obrigatoriedade, sem par nas outras profissões (engenheiros, farmacêuticos, gestores, arquitetos), criar um coro de indignação, levando a uma crescente emigração, surge o esclarecimento que as soluções (quais?) “não estão previstas nesta legislatura (sete meses), para a qual não temos planos”.
Os sistemas informáticos funcionam mal, não servem para auxiliar os profissionais e estão em risco de não suportarem o crescimento? Resolve-se tudo com umas apps premiadas internacionalmente (mas ainda não validadas pelos utilizadores) e umas consultas por telemóveis (melhor ainda, com médicos virtuais, ou com inteligência artificial, porque a natural está em queda).
Os tempos de espera estão a aumentar, mas não as listas (!?), e quando aumentam é porque os hospitais gerem mal os recursos que “cada vez são mais”. Nunca houve tantos recursos (e tantos problemas). Os nossos gestores logo se agitam...
A insatisfação dos profissionais é um novo problema, apesar de terem as carreiras, progressões e remunerações congeladas há mais de 12 anos, tantos ou mais que os professores. Solução: desregulam-se as funções e substituem-se médicos por enfermeiros, enfermeiros por técnicos, miscigenando as profissões até termos uma única raça híbrida, barata e indigente que segue as determinações de sábios protocolos centrais. Basta ler as propostas “apaziguadoras” que estão em discussão para perceber o entendimento da gestão dos recursos humanos dos diferentes grupos profissionais. Até cédulas profissionais para terapeutas não convencionais, profissões entretanto proibidas na nossa vizinha Espanha, são emitidas, legitimando práticas com fundamento científico só comparável às sanguessugas e mezinhas do século XVIII.
Faltaram 63 milhões de embalagens de medicamentos em 2018 nas farmácias? 25% das farmácias estão em risco de fechar? A culpa é da indústria e comércio internacional que não abastece o mercado, que há anos “gasta pouco e fiado”.
No autocarro do SNS, todos os passageiros estão a ficar agitados. Alguns saíram e apanharam o Uber para conseguir chegar ao cimo do caminho. Outros gritam em pânico, os mais fervorosos ainda rezam pela salvação, ou pelo menos por uma revelação divina...
As Ordens da Saúde, preocupadas com o SNS, têm evidenciado problemas e apontado soluções. Todas têm um profundo conhecimento técnico e político dos problemas do sector e temem que a ministra solte o travão de mão, sem garantias que tem combustível ou que o motor, há muito ao ralenti, consegue funcionar. Todas estão dispostas a contribuir com empenho e soluções, a empurrar o autocarro enquanto não chegam mecânicos certificados e a gasolina.
Mas o condutor tem que saber para onde quer ir e, sobretudo, garantir que todos empurram na mesma direção. Se se soltar o travão, com o motor desligado, rapidamente descemos em roda livre para um desastre de consequências imprevisíveis.
Teremos que chamar alguém para socorrer os envolvidos. Não nos servirá o INEM, dado estar nos lugares da frente do autocarro...
O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico