Tábua rasa
Mudar de treinador é, a esse respeito, uma janela de oportunidade para mudar de vida, especialmente para os jogadores que se demoram na penumbra.
Qual é a primeira coisa que faz um novo professor quando entra na sala de aula e constata que o colega se esqueceu de apagar as anotações que deixou no quadro? Limpar tudo, numa espécie de terraplenagem para poder pôr mãos à obra, certo? Até porque vai trabalhar com outras ideias e outra metodologia, procurando impactar os alunos com base num processo de transmissão de conhecimento que parte de bases muito próprias. Pois bem, no desporto o cenário não é muito diferente. Mudar de treinador é, a esse respeito, uma janela de oportunidade para mudar de vida, especialmente para os jogadores que se demoram na penumbra.
Adel Taarabt é um daqueles alunos apagados no fundo da sala que decidiu ganhar coragem e sentar-se na fila da frente, desejoso de mostrar ao professor que sabe mais do que aparenta. Durante os anos lectivos anteriores foi chamado várias vezes ao gabinete do director e demorou a entrar nos eixos, mas aos poucos parece ter-se dado conta de que, se até à data não saiu da sombra, muito o deve aos erros que foi repetindo ao longo do caminho. E digo muito, sem carácter de exclusividade, porque para o sucesso ou insucesso de uma empreitada concorre sempre mais do que um protagonista.
Não há nada como olhar para um plantel sob o prisma da tábua rasa para reconverter energias. Se o treinador der prioridade à dimensão do rendimento, a intensidade do abalo provocado no status quo dependerá somente do empenho (e da qualidade) de cada um. Os “indiscutíveis” terão de acelerar para se manterem no topo, porque todos os outros redobrarão esforços para provarem hoje, à luz de um novo olhar, o que ontem não conseguiram. No pressuposto de que a igualdade de oportunidades estará (de novo?) em vigor.
O marroquino intermitente que o Benfica foi buscar em 2015 tem o dom de nos lembrar que não há casos irremediavelmente perdidos. Não por ter completado meia-dúzia de minutos pela equipa principal mais de três anos depois de ter chegado a Lisboa, mas por ter recuperado o direito de entrar nas contas. E se o médio criativo voltou a ser tido em consideração na Luz, deve-o a si mesmo, antes de mais, e a um treinador que não vive de estigmas nem de rótulos de um passado que não viveu na primeira pessoa.
Taarabt pôs o pé em ramo verde ao longo do seu trajecto? O próprio já admitiu que sim. Mas um jogador nunca é apenas um jogador. Será sempre o jogador e as suas circunstâncias - e o Benfica conhecia bem o perfil do talento que estava a contratar.
Quando foi chamado a saltar do banco no encontro com o Tondela, gerou reacções díspares entre os adeptos que reclamavam uma nova oportunidade para o marroquino e os que defendiam uma aposta mais continuada num menino da casa, como é o caso de Gedson. Mas para cada função há um instrumento adequado, mesmo que muitas vezes o que o treinador idealiza nunca chegue a ganhar vida.
A riqueza de um elenco bem construído é mesmo essa, a de proporcionar ferramentas talhadas para diferentes tarefas. Taarabt não está a roubar vez a ninguém, tal como Samaris nada roubou a Fejsa ou Rafa a Cervi – até porque se há treinador que tem aproveitado a amplitude do plantel, esse treinador é justamente Bruno Lage. A alta competição é o momento, é a assimilação da ideia de jogo e é, cada vez mais, a estratégia. Sem calendários pré-definidos e sem bolas de cristal para se prever quando é que a árvore vai dar frutos.
Podemos puxar para a conversa casos como o de Luka Jovic (errou, como já reconheceu, mas aprendeu depressa), como o de Adrián López (desacreditado no FC Porto e resgatado por Sérgio Conceição) ou, mais longínquos, como os de Ian Wright ou até Luca Toni, ainda que com nuances diversas. Exemplos não faltam, ou não fosse o desporto um viveiro de histórias de redenção sentadas na sala de espera.