“Os políticos adoram Veep. Só não acham que a série fale deles”
Ao fim de sete temporadas, Julia Louis-Dreyfus e a sua equipa dizem adeus a Veep, a sátira política que não deixa ninguém em Washington a salvo e onde toda a gente é vil, infame e capaz de tudo para se agarrar ao poder.
“Não acho que exista alguém em toda a série que seja verdadeiramente mau. O que há são vários patamares de maldade a que são capazes de descer para conseguir o que querem. E a Selina é a pessoa mais capaz de bater no fundo para lá chegar, apesar do sorriso de dez mil watts.”
Reid Scott lá sabe – a sua personagem em Veep, o assessor convencido e engatatão Dan, é uma das mais ambiciosas e impiedosas da série de comédia da HBO que começa esta segunda-feira em Portugal a sétima e última temporada. Ele aturou muita coisa a Selina Meyer, a vice-presidente interpretada por Julia Louis-Dreyfus que chegou à presidência por portas travessas, depois perdeu-a, retirou-se da política e agora está de novo a concorrer à nomeação presidencial.
Há uns anos largos houve uma outra série sobre os bastidores de Washington que deu a volta ao mundo – chamou-se Os Homens do Presidente e foi criada pelo argumentista e dramaturgo Aaron Sorkin. Veep tem um actor em comum com essa série: Gary Cole foi nela vice-presidente durante três temporadas, aqui começou como convidado antes de se juntar ao elenco regular na quarta série de episódios como o analista e estratega Kent. Cole diz que essa série criada por Aaron Sorkin era quase uma versão idealista do governo americano e que a verdade da política americana está mais próxima de Veep.
Afirmação confirmada por Kevin Dunn, aliás Ben, o director de campanha maníaco-depressivo-ex-alcoólico, e veterano secundário de cinema e televisão: “Os políticos já não são idealistas. Fazem tudo o que for preciso para continuarem no activo. As pessoas ficam muito chocadas quando vêem um antigo assessor da Hillary Clinton a trabalhar com fulano de tal, mas não existem realmente lados ou facções. Tudo depende de onde está o dinheiro e do que é preciso fazer para continuar no jogo. Mas a verdade é que todos os políticos adoram Veep. Só não acham que a série fale deles.” “Quando fomos ao Jantar dos Correspondentes da Casa Branca, todos eles nos diziam ‘conheço exactamente alguém assim’,” diz Cole. “Apontavam sempre o dedo a outro. Mas nunca a eles próprios.”
“Toda a gente é vil e toda a gente é um sacana” — é assim que Julia Louis-Dreyfus (ainda mas cada vez menos sempre a Elaine de Seinfeld ) descreve as personagens de Veep confirmando que, à imagem de Washington, ninguém na série é boa pessoa. E nenhuma pior que Selina Meyer.
Matt Walsh, que interpreta Mike, ex-assessor de imprensa da vice-presidente e agora repórter da BuzzFeed, confirma: “Por muito que gostemos da Julia, a Selina não é, mesmo, boa pessoa.”
Ou, como diz a própria Louis-Dreyfus, “Adoro a Selina Meyer. Adoro-a mesmo. Só posso adorá-la. É uma desgraça de ser humano e adoro-a com todo o meu coração.” Faz uma pausa. “Mas nunca votaria nela.”
Em Nova Iorque, o adeus de Veep está a ser fortemente promovido pela HBO – a cidade está coberta de anúncios em autocarros e estações de metro e cabines telefónicas, com Selina Meyer “imortalizada” num falso selo de correio com a frase Selina forever e um carimbo de “devolvido ao remetente”. É o ponto final de um percurso que viu a série vencer por três vezes o Emmy de Melhor Série de Comédia e Julia Louis-Dreyfus ganhar consecutivamente seis Emmy de Melhor Actriz numa Série de Comédia, num total de 17 estatuetas ao longo das seis temporadas já exibidas (2012-2017).
O último lote de episódios concentra-se na nova candidatura à presidência de Selina, e ao périplo de campanha que a vê cruzar-se com antigos e novos rivais (entre as quais uma jovem senadora negra que faz pensar no fenómeno Alexandra Ocasio-Cortez). Louis-Dreyfus é peremptória: “Se eu sentisse que a série precisava de ir mais longe, teríamos feito mais episódios. Mas sentimos que a narrativa faria mais sentido numa única temporada do que espalhada por duas ou mais. E foi isso que ditou o final da série – embora seja um final doce-amargo.”
Dois elefantes na sala
Há, claro, um elefante nas salas do hotel Essex House, à beira do Central Park, onde o elenco de Veep se reúne para receber a imprensa internacional. (Ou melhor, dois elefantes, mas do outro já falamos.) A actriz de 58 anos foi diagnosticada com cancro da mama em Setembro de 2017 e as suas operações e tratamentos levaram à interrupção da produção – é por isso que esta temporada final de apenas sete episódios surge com um ano de atraso, em 2019 e não em 2018. Kevin Dunn fala pelo elenco quando explica que Louis-Dreyfus “põe a fasquia muito alta no plateau.” “Quando se tem uma actriz principal que está a carregar a maior parte do trabalho aos ombros e tem mais energia e resistência que toda a gente e ainda assim se diverte à grande, é assim que todas as rodagens deviam ser.”
Anna Chlumsky, a eterna braço-direito Amy, confessa “não perceber onde ela vai buscar a energia toda” (é o mais próximo que se chegará da doença de Louis-Dreyfus). E Timothy Simons, a “revelação” da série no papel de Jonah, o zé-ninguém convencido e desastrado que nesta última temporada também se candidata à presidência, põe o dedo na ferida. “Lembro-me de a Julia dizer, logo ao princípio da série, que, se não existir algum tipo de alegria, de divertimento, então o que é que estamos a fazer aqui? E se não houver alegria no que fizermos, então porquê fazê-lo?” Chlumsky pega nisso. “Há uma razão pela qual falamos de representar como playing – brincar – e é isso que a Julia tem feito a carreira toda. Ela adora representar no sentido lúdico, de brincar. Isso desfaz todas as hierarquias.”
A própria limita-se a dizer que “dá muito trabalho, mas gosto tanto da série e do que faço que é daí que retiro a energia.” Afinal, Louis-Dreyfus foi quase uma co-criadora de Veep na medida em que foi o seu encontro com o humorista britânico Armando Iannucci (autor de A Morte de Estaline) que pôs a bola em movimento. “E posso dizer-lhe que a série ultrapassou, largamente, as minhas expectativas,” diz. “Não fazia ideia do que iria acontecer. Esperava que resultasse, claro, e que tivesse sucesso… mas eu não sabia de todo a repercussão que iria ter.”
Originalmente, Veep seria uma adaptação muito livre para a realidade americana de The Thick of It (2005-2012), a série de Iannucci sobre os meandros da política britânica, centrada aqui nas desventuras de uma vice-presidente incompetente e venal. Ao fim de quatro temporadas, esgotado, Iannucci cedeu as “rédeas” de Veep a David Mandel, que vinha de Calma, Larry! e trabalhara com Louis-Dreyfus em Seinfeld. Com a passagem de testemunho, o ADN da sátira política não mudou, mas outras coisas sim. “Havia coisas de que o Armando queria falar que eram muito intrinsecamente americanas, que seriam mais fáceis de compreender para alguém que era natural dos EUA e que acho que o Dave aborda melhor,” explica Timothy Simons. “Por outro lado, com o Armando podíamos chegar ao fim do episódio 3 ou 4 sem ele saber como é que íamos acabar a temporada. O Arm adorava essa ideia de saltar do penhasco sem saber se levava pára-quedas.”
Anna Chlumsky pega na ideia: “O Arm começava uma temporada e ia ver onde é que isso dava; o Dave sabia onde começar e sabia onde queria acabar, mas não como lá chegar. O Arm trabalhava também muito com a ideia de improvisar com todo o elenco e depois integrar isso no guião, enquanto o Dave prefere ter um guião mais estruturado e trabalhar individualmente com os actores um a um. Mas são apenas processos diferentes, porque o tom da série nunca mudou.”
Apesar de tudo rodar à volta de Selina/Julia, Veep é essencialmente um trabalho de ensemble. “E se não gostássemos todos tanto um dos outros a série não teria resultado,” como diz Tony Hale, aliás Gary, o sofredor assistente pessoal de Selina (papel pelo qual venceu três Emmy de actor secundário). “A Julia sabe que temos de estar todos a puxar para o mesmo lado. Muitas vezes a ‘vedeta’ não facilita as coisas, andamos todos em bicos dos pés ao lado dela; ela foi exactamente o oposto. Criou uma relação verdadeiramente de grupo.”
Gary Cole confessa nunca ter estado numa série “onde se trabalhasse tanto em grupo. A televisão é em grande parte feita de cenas aos pares. Aqui, não, éramos sempre uma multidão, com a Julia ao centro. Era tudo uma grande dança.” “Uma grande dança improvisada,” completa Kevin Dunn. “A Julia passava o tempo a picar-nos para ‘sujarmos’ mais as coisas, armarmos mais confusão. Para que as coisas se parecessem menos com um guião.”
Chegamos ao segundo elefante na sala. Veep é, claro, uma série para a era Trump. Um amigo nova-iorquino confidenciava que às tantas teve de parar de a ver devido à proximidade com a realidade da política americana – e o nome do 45.º presidente americano é o outro elefante no Essex House. Julia Louis-Dreyfus não se coíbe de chamar a Donald Trump fake president “e a sua presidência tornou mais complicado aos argumentistas inventar comportamentos mais extremos.” Gary Cole confirma que a nova série parece ser mais um comentário sobre o que se passa hoje, em grande parte devido ao interregno de um ano entre temporadas.
Matt Walsh confirma: “O Armando instalou a série num mundo ficcional neutro, o que me parece ter sido superinteligente, mas que reflectia o que Washington é hoje. Mas essa sensação de presciência que a série parece ter surgiu em parte das pesquisas da equipa de argumentistas. Todos os anos íamos a Washington entrevistar estagiários, assessores, senadores, e por isso a pesquisa está sempre ligada à política actual. E houve muitas ideias que foram abandonadas porque as achávamos demasiado absurdas ou inacreditáveis, e pimba! Víamos as coisas a acontecer.”
E, como pergunta uma jornalista polaca a Julia Louis-Dreyfus, num concurso entre Selina e Trump, quem venceria? “Não sei responder a isso,” diz a actriz entre risos, mesmo já de saída para a próxima entrevista. “A Selina é uma ficção. Trump é outro tipo de ficção.”
O PÚBLICO viajou a convite da HBO