O futuro na Beira? “Ninguém gosta de falar, ninguém sabe o que será”

Ainda é cedo para saber quantos portugueses terão saído da Beira nas duas semanas após o ciclone Idai. Mas algumas famílias pediram transferência dos filhos para Maputo ou para Portugal.

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Carlos Miroto, antes de embarcar para Portugal Daniel Rocha
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Cidade da Beira Daniel Rocha
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Destruição na Beira Daniel Rocha

O português Carlos Miroto tinha 14 anos quando fez a viagem de 28 dias por mar para Moçambique no navio com o mesmo nome. Regressou para fazer a tropa em Portugal e voltou para combater na guerra colonial.

Sempre viveu no Norte ou no Centro, na vila de Milange (colada ao Malawi) ou na cidade da Beira. E sempre soube o que fazer para se reerguer, a si, à sua família e à sua empresa de transportes e madeira depois das rupturas que se atravessaram no seu caminho, antes, durante ou depois dos 15 anos da guerra civil que terminou em 1992.

Agora é diferente. “Não sei o que pensar.” Nem sabe como fazer, diz baixando a cabeça. E não é pelos seus 71 anos ou pelo frágil bater do coração, motivo pelo qual foi um dos sete repatriados da Beira para Portugal há precisamente uma semana; é pelo sobrenatural “daquilo” que arrastou tudo na sua frente. “Não fazia ideia nenhuma da dimensão que aquilo ia atingir.”

É também um dos 2550 portugueses que residem na província de Sofala (onde se situa a Beira), segundo as contas da Embaixada de Portugal em Moçambique. A comunidade é composta por pessoas de diversas profissões, que chegaram a Moçambique por diferentes razões e em tempos muito diferentes ao longo de décadas.

A mulher de Carlos Miroto, os quatro filhos e os cinco netos estão a salvo, após a passagem do ciclone Idai. Nessa noite (de 14 para 15 de Março) em que ninguém dormiu e todos espantaram medos estendendo os colchões no corredor, chegou a imaginar casas a levantar o mesmo voo amaldiçoado que desprendeu as chapas dos telhados. Os 20 trabalhadores fixos aos quais se juntam 80 de trabalho sazonal também estão bem.

Quando o vento parou e o sol, em vez das chuvas, inundou as ruas da cidade, alguns foram a sua casa. Sem trabalho, sem comida, perguntaram: “Como vamos fazer?” Nem eu sei, respondeu então. Por agora, pediu para vir a Portugal tratar-se. Não havia condições na Beira, para onde voltará em data incerta. Os filhos tomam conta da empresa que ficou sem os edifícios e o parque automóvel e da qual restam alguns camiões.

A cidade ficou sem tecto

Na cidade da Beira, há empresas como a Germotol Portuguesa que só são portuguesas no nome ou na morada. Logo após a independência, em 1975, a Germotol foi intervencionada – mas não nacionalizada – e acabou ao abandono.

Agora pertence a um grupo internacional e mantém a sede na Rua do Algarve, no centro da cidade. O gerente, o moçambicano Eliot Aguiar, diz que todos os funcionários estão bem. Mas acrescenta: “Ficámos sem tecto. A cidade toda ficou sem tecto. Não sabemos por onde começar.”

Como esta, também as empresas de Carlos Miroto ou da portuguesa Adélia Teixeira, a Ferpinta, que emprega 130 trabalhadores, contabilizam prejuízos, removem destroços e garantem a alimentação a trabalhadores que ficaram sem nada, diz a administradora da Ferpinta, com sede em Maputo e fábrica na Beira desde 1998.

Preocupa-a “o problema gravíssimo de saúde pública” que pode resultar das inundações, da destruição, das mortes. E teme que os donativos e a ajuda internacional não cheguem às mãos de quem deviam chegar. “O problema mais grave e do qual a gente não gosta de falar é o futuro. Ninguém sabe o que será. Vai ser uma nova realidade, com a construção de uma nova cidade. Por agora, consigo pensar só um dia de cada vez.”

Foram contactadas “de forma personalizada” pelo consulado 82 empresas locais que pertencem a portugueses, informa o cônsul-geral da Beira, João Patrício. Questionado sobre os pedidos de apoio financeiro para reabilitação das casas ou das empresas, diz que “esses levantamentos ainda estão em curso”.

João Patrício acrescenta que “o apoio aos cidadãos abrange ainda a área médica e alimentar” com registo de “174 inscrições para apoio alimentar”. E diz que mais de 600 pessoas, da comunidade portuguesa, de várias faixas etárias, foram vacinadas por colaboração entre o Consulado e o Exército português​.

Não há informação oficial sobre portugueses a deixar a Beira por iniciativa própria depois do ciclone Idai – para se estabelecerem em Maputo, numa outra cidade moçambicana ou para um regresso definitivo a Portugal. Podem ter saído cidadãos sem conhecimento do Consulado Geral “por não haver necessidade informar os serviços consulares dos movimentos que desejam fazer no território moçambicano”, justifica João Patrício em respostas enviadas ao PÚBLICO.

Além do grupo de sete portugueses repatriados no passado dia 24, onde se inclui Carlos Miroto, “haverá [ainda] sete repatriamentos, [dos quais] três com efeitos imediatos e quatro num horizonte temporal mais alargado”.

Em todo o país, o número de portugueses residentes ascenderá a 23 mil, de acordo com a Embaixada portuguesa em Moçambique.

“Se se conseguir estabilizar aquela região e criar um clima de confiança, se as coisas forem reconstruídas rapidamente e se houver de facto uma resposta”, não há razão para uma saída dos portugueses da Beira, considera a antropóloga Marta Rosales, professora e investigadora do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, com especialização em migrações e trabalho de terreno realizado em Moçambique na década de 2000.

O mesmo diz a directora da Escola Portuguesa da Beira, Ângela Silva, para quem muito irá depender do ritmo de reabilitação da cidade.

Menos alunos 

As aulas já retomaram e nota-se a ausência de alunos portugueses, diz Ângela Silva. Dos 26 alunos no básico e secundário, dez saíram da Beira. Desses, oito tinham pedido a transferência para escolas em Maputo ou em Portugal. Das dez crianças na pré-primária, cinco também saíram nestas duas últimas semanas. “Com os poucos que saíram, e por não sermos muitos, já se nota que se foram embora”, diz a directora.

A Escola Portuguesa da Beira é uma escola de direito privado moçambicano, autorizada a dar o currículo do ensino português e certificada pela Escola Portuguesa de Moçambique em Maputo.

Foi criada – à semelhança das outras – com o objectivo de garantir a estabilidade do ensino no tempo das incertezas após a guerra civil, e em particular para não separar famílias, evitando que, nas classes média e alta, os jovens fossem estudar para países vizinhos como a África do Sul, ou ainda Portugal ou Maputo.

Engenheira química, chegou a Moçambique em 1987, na pequena equipa convidada para abrir uma grande fábrica de conservas com fundos europeus. Hoje, Ângela Silva mantém aberta a única escola portuguesa na cidade da Beira (em 1999, havia três). Tem 276 alunos – desses, 36 são portugueses – entre a pré-primária ao 9º ano. Os alunos são, na sua grande maioria, moçambicanos.

Muitos outros alunos portugueses optam por frequentar uma das 12 escolas internacionais ou inglesas nesta zona de Moçambique com forte influência anglófona. Em 1999, havia sete escolas portuguesas em todo o país. Portugal mudou as regras, explica. Hoje há três.

Os portugueses trabalham essencialmente “no comércio, como empresários e assalariados; como operários e quadros dirigentes da indústria nos sectores dos transportes, metalomecânica e exploração florestal; na agro-pecuária, pesca, hotelaria e turismo”, informa a embaixada. “Há ainda um número significativo de docentes universitários e de profissionais liberais, como engenheiros, arquitectos e advogados.” Cerca de 40% dos portugueses residentes são jovens com menos de 18 anos.

Marta Rosales lembra que há muitas pessoas com projectos distintivos como pequenos hotéis ou restaurantes e ainda ligadas à Cultura, académicos a dar aulas na Universidade Eduardo Mondlane, ou pessoas ligadas ao Ensino. 

Ficar ou partir?

“A comunidade portuguesa residente em Moçambique é muito diversa. Não se deve pintar um quadro demasiado generalista. Como em todo o lado, há os exploradores, mas há os outros. Criam-se laços. Há aqueles que estavam há pouco tempo quando a guerra civil começou e não conseguiram nem tiveram coragem de deixar o país”. Não quiseram virar costas.

E agora? “Se a ajuda for desarticulada e desorganizada, e não se instalar essa confiança, as pessoas vão pôr a hipótese de ir embora ou de reencontrar uma posição noutra cidade. Se acontecer como aconteceu por exemplo no Haiti [com o terramoto de 2010]”, onde o caos se sobrepôs à ordem na reconstrução, “ou quando a UNITA entrou em Luanda depois das eleições em Angola de 1992, e muitos portugueses vieram-se embora, será muito assustador”. Também depende de as pessoas terem um investimento próprio na Beira, acrescenta Marta Rosales.

Como Espanha e Angola, Moçambique também foi um destino preferencial para muitos portugueses a partir de 2011, durante a crise em Portugal. Os números de entradas cresceram sempre até 2015, quando atingiram 6619 (tinham sido 2264 em 2011). Em 2016, já só entraram 1439 portugueses em Moçambique, segundo os dados do Observatório da Emigração.

Antes disso, muitos portugueses foram para Moçambique em comissões de serviço de empresas multinacionais, bancos como o BIM ou o BIC que são extensões de bancos portugueses, no início da aposta do investimento externo em Moçambique, diz Marta Rosales. Nestes incluem-se dirigentes e quadros técnicos médios e superiores.

Entre todos, diz a académica, “há as pessoas que enquadram a migração transitória, e aquelas que nunca saíram e pensam Moçambique como a sua terra”.

Carlos Miroto mostra o cartão de residente vitalício. “A minha terra é Moçambique.” Não há como explicar, a não ser deste modo: “Foi lá que fiz tudo.” Aqui onde está não consegue fazer nada, sente-se encurralado e tudo lhe parece complicado. Além do mais, “uma cidade daquelas tem que ser reerguida”, diz.

Voltará para lá, só não sabe quando. “Por mim, pela minha família e também pelos trabalhadores e pela empresa” que cresceu ao longo do tempo. “Não a quero ver no chão.”

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