“Daqui a 20 anos, pode não haver países europeus na cimeira do G7”
O Presidente da República fala de um mundo que é muito diferente daquele que existia há dez anos, de uma conjuntura desfavorável em que os Estados Unidos se distanciam, a Rússia intervém e a China ganha influência. Das crises das democracias europeias perante o risco dos populismos. E, sobretudo, da necessidade de um novo projecto europeu — político, económico e social —, que devolva à Europa o seu papel indispensável no mundo. Décima de uma série de entrevistas sobre A Europa e o Presente.
Para Marcelo Rebelo de Sousa, a Europa não dispõe hoje de um centro político ou de uma liderança suficientemente forte para enfrentar os desafios internos e externos que tem pela frente. Angela Merkel está enfraquecida. Passada a crise do euro, durante a qual França e Alemanha dominaram, o eixo Paris-Berlim não se renovou com a entrada em cena de Emmanuel Macron. O Presidente da República considera preocupante que, aparentemente, o Presidente francês tenha deixado cair uma reforma mais profunda da zona euro, que considera indispensável, e quando o tempo para a executar se esgota. Marcelo Rebelo de Sousa vai mais atrás, à primeira das crises que a União teve de enfrentar — a crise financeira de 2008 — para lhe apontar três erros. O primeiro, de desatenção — a Europa pensou que o Atlântico a preservava de uma crise que via como americana. Os dois seguintes, de precipitação. Quando escolheu investir, investir, investir, para tentar travar uma profunda recessão; e quando, de um momento para o outro, decidiu que o problema eram os défices, como se a decisão anterior nunca tivesse existido.
Não lhe pergunto se esta crise europeia é diferente das outras, porque já respondeu na sua intervenção na conferência sobre a Europa que o PÚBLICO organizou no Porto. Nessa ocasião classificou-a como estrutural e não conjuntural. Mas há outra questão à qual é sensível que gostava de lhe colocar. Houve a crise financeira, a Grande Recessão, a crise do euro, que colocou a Europa à beira do abismo, com duras consequências económicas e humanas. A crise pôs em evidência muitos dos problemas das sociedades democráticas ocidentais. A globalização e a digitalização acentuaram as desigualdades. Mas fica a ideia de que os governos europeus não tiraram todas as lições políticas e sociais desta sucessão de crises. Na sua intervenção, referiu que não se podia deixar tudo aos mercados e sublinhou a importância da coesão social. O que concluiu disto tudo?
Vale a pena voltar um pouco atrás e recordar o que se passou nessa primeira crise [2008]. A União Europeia falhou, em primeiro lugar, por não ter percebido que vinha aí uma crise. Não percebeu. Quando ela surgiu nos EUA, pensou que não chegaria à Europa na dimensão em que chegou.
Agiu tarde?
Levou-a a reagir com um ano de atraso. Ainda houve a presidência europeia de Portugal, ainda com a convicção de que o Atlântico nos separava. Depois, a primeira reacção, quando os europeus ganharam consciência do que se passava foi: vamos para o keynesianismo, porque há aqui um risco de arrefecimento da economia.
E de uma grande recessão.
E, portanto, vamos investir, investir, investir.
E isso aconteceu. Salvaram-se os bancos.
E isso aconteceu durante cerca de um ano. E, de repente, a Europa decidiu fazer uma inflexão radical no sentido oposto. Houve três erros consecutivos. O primeiro, de desatenção; o segundo, por precipitação; o terceiro, por nova precipitação, ao inflectir a política, perante os efeitos da política anterior nos orçamentos dos Estados, que eram previsíveis no momento em que decidiu adoptar uma política keynesiana. Mais tarde, tudo isto foi silenciado, como se não tivesse existido e, de cada vez que havia um político, sobretudo dos Estados que ficaram com grandes buracos orçamentais, vinha dizer que tinha sido convidado a gastar, a investir, a seguir a fórmula keynesiana, respondiam-lhe que estava enganado, que isso nunca tinha acontecido.
Creio que estas lições foram aprendidas. A União Europeia está mais atenta à aproximação de sinais de crise e a prova é que o Banco Central Europeu tem estado muito cuidadoso. Podia ter sido mais afoito em matéria de criar condições para uma ligeira mudança de orientação, mas preferiu prosseguir na mesma linha...
... preventiva?
Preventivamente. Segunda lição: está-se hoje muito atento para não deixar arrefecer a economia, mas sem convites indiscriminados e radicais ao que pode pôr em causa os equilíbrios orçamentais. Terceiro, também se percebeu que é preciso ter atenção à economia e à sociedade. Não basta olhar para o lado estrito do equilíbrio financeiro, é preciso olhar para o outro lado, mais económico.
O que é que não se percebeu?
O que nos dá essa sensação de não estar devidamente percebido? Creio que não tem tanto que ver com a desatenção perante o que se passa. Há a atenção do BCE, a atenção das instituições europeias e dos Estados. O que se passa é que o mundo e a Europa mudaram imenso. O mundo que existia na altura já não existe e a Europa que existia na altura já não existe. É uma questão vasta, mas vou chamar a atenção para três ou quatro pontos.
O mundo da altura era um mundo em que fluía mais facilmente o relacionamento entre os EUA e a Europa. Não é o caso hoje. Hoje, pode haver tomadas de posição da Administração americana, ou directamente por causa da guerra comercial com a China ou no que toca à guerra comercial com a própria União Europeia, que acabem por ter efeito sobre a Europa. A guerra comercial com a China tem efeitos colaterais, no caso de haver mesmo uma guerra; e tem efeitos se não houver guerra, porque a Europa fica exposta como adversária principal no discurso oficial norte-americano. A guerra comercial com a Europa, essa, tem efeitos directos imediatos. E isto é novo. É também um pouco novo o facto de a China ter hoje um peso que não tinha naquela altura e estar muito interessada no que se passa na Europa. Antes, a China olhava a Europa como um mero aliado táctico objectivo no confronto com os EUA e na diferenciação em relação à Rússia. Pensava que era bom que a Europa não se dividisse, que não se fragilizasse. Agora, é mais do que isso. A China quer avançar na Europa.
Quer aumentar a sua influência política na Europa?
Ora aí está. Nesse sentido, a problemática é um pouco mais complexa do que nessa altura.
Já lá vamos à China…
O que se passa é que a Europa está mais sensível a fenómenos que têm que ver com o comércio internacional, com a evolução do crescimento da economia global — no fundo, a guerra secular que está em curso entre os EUA, a China e a Índia quanto a saber qual será o centro do poder económico no futuro.
Qual deve ser o lugar da Europa nesse novo mundo é também um tremendo desafio?
Tem de se definir, mais tarde ou mais cedo, nessa luta. A opção natural seria estar com o aliado norte-americano, mas para isso é preciso que o aliado norte-americano esteja com a Europa. Se não, é difícil. Perde-se o que há de bom dos dois mundos, fica-se com o pior dos dois mundos. Mas a Europa mudou muito. Nessa altura, durante os anos da crise [do euro], a Europa tinha uma liderança clara que se chamava Merkel e que, depois, se projectava na Comissão, no Parlamento Europeu, que alinhava, a partir de uma certa altura, com o BCE. Existia.
Mesmo que nem sempre tenha acertado na melhor forma de liderar a Europa.
Não interessa. Era o centro. Liderava. Acontece que essa liderança entra no seu último mandato, aliás, rodeada de novos desafios internos complicados — uma direita radical que não existia na altura; um SPD mais fraco que não existia na altura; uma CDU-CSU como novas lideranças nos dois partidos, que não correspondem à liderança do Governo, o que significa que a liderança é mais esbatida. Por outro lado, multiplicam-se as crises nos sistemas políticos nacionais.
Na Europa toda e não apenas na Alemanha.
Na Europa toda. Em França, é o que vemos. Em Espanha, vamos ter eleições. Em Itália, é o que sabemos. Na Grécia, vamos ter eleições. Mas, no centro da Europa, temos um discurso diferente na Áustria, a subida de forças radicais de direita em países como a Suécia e a Holanda, por exemplo, o que significa que há clivagens internas que não são estritamente internas, porque têm uma projecção europeia.
Reflectem-se na União?
Na organização da zona euro, nas migrações, nos refugiados. Em tudo. E já não falo na Europa de Leste, que conheceu uma evolução que foi passar da influência da antiga União Soviética para a construção da democracia no quadro europeu num sentido próximo das duas grandes famílias políticas europeias e que, agora, conhece uma evolução no sentido contrário.
Num sentido que podemos designar por autoritário?
De um sistema de mais autoridade, mais nacionalista.
E mais antieuropeu.
Mais crítico em relação a vários aspectos da integração europeia.
Voltando ao início, falta ainda no que disse a questão da dimensão social.
E falta o “Brexit”. Faltam dois fenómenos. Um é que a crise vivida deixou traços sociais e esses traços permanecem para além da aparente saída da crise. Saiu-se da crise em ternos orçamentais — em muitos casos, não em todos. Saiu-se da crise em termos de crescimento, ainda que inferior ao que se registava antes dela. E quer os sacrificados da crise quer os que não recuperaram com a tímida recuperação europeia constituem um “exército de reserva” de insatisfação crónica para o populismo.
Mas há ainda outra razão. Passaram quase 20 anos e há novas gerações com novas visões do mundo. Para essas gerações, os problemas são outros. A Europa está muito envelhecida e tem pouco a dizer aos jovens. O trabalho vai ser diferente e a mobilidade das pessoas também. As alterações climáticas colocam desafios que são de hoje e não de depois de amanhã, como eram para as gerações mais velhas. Estes problemas são novos em relação à problemática meramente orçamental, que foi a que dominou a segunda resposta da Europa à crise. Temos uma Europa com mais clivagens, mais divisões, com lideranças mais fracas, com novos problemas e com velhas questões sociais.
Que não estão resolvidas.
E que são muito sensíveis para as gerações mais velhas.
Mesmo em Portugal, onde ainda não estamos a enfrentar a emergência de populismos e nacionalismos, tem feito muita pedagogia sobre os seus riscos. Mas, se não se for às causas, os problemas persistem.
Primeiro é preciso ter em atenção o que, a meu ver, foi uma parte feliz do discurso do comissário Carlos Moedas na conferência do PÚBLICO no Porto: os medos na Europa de hoje. São os medos que geram a xenofobia, os radicalismos, os cepticismos, os chamados “populismos”. São muito diferentes, uns são mais económicos, outros mais políticos…
Outros mais culturais…
E culturais. Mas existem. É preciso compreender a razão de ser destes medos.
E tentar ir ao encontro das razões que os provocam.
Vale a pena saber as razões pelas quais isto está a acontecer. E a razão pela qual fiz a minha chamada de atenção sobre os populismos, há um ano, foi porque naquela ocasião não se olhava para o problema. Achava-se que era difuso e longínquo. Não era nem difuso nem longínquo. Logo a seguir, houve eleições que o comprovaram, na Europa. Mas não basta diagnosticar, é preciso perceber quais são as causas. Algumas dessas causas vêm de trás. Vêm de trás os problemas sociais não resolvidos, a insuficiência da recuperação depois da crise, o envelhecimento da população das sociedades europeias. Vem de trás a frustração das novas gerações, mesmo que aumentadas. Vem também de trás a insensibilidade total na relação com África; a incompreensão do que se estava a passar em África e que chegaria ao Mediterrâneo e ao Sul da Europa. Vem de trás a incompreensão da ausência de um papel da Europa no Próximo e Médio Oriente, que teve como consequência os refugiados e as migrações. Vem de trás a forma como a Europa lidou com a Federação Russa. Minimizou-a. Pensou que a Rússia estava condenada a penar por muito tempo até voltar a ter uma voz activa, de tal forma tinha ficado destruída pela perda do império.
Enganou-se, mas os EUA também.
É verdade que a Rússia passou de potência mundial a potência regional. Mas é uma potência regional vizinha da Europa que quer alargar o seu espaço vital.
Com uma política agressiva para a qual a Europa não estava preparada?
Com uma política interventiva muito grande, no que respeita à Europa. Subestimou a importância estratégica da Rússia, tal como os EUA, como disse, durante um tempo.
Isto tudo somado gerou menos crescimento, mais desemprego, problemas para os sectores envelhecidos da população, problemas para os jovens, migrações e refugiados que não se esperava, problemas de vária ordem resultantes do vizinho mais activo que é a Rússia. E, como se isso não bastasse, temos os EUA com uma orientação que não é amiga da Europa, excepto na segurança. É tudo isto somado que gera os medos políticos, os medos económicos, sociais e culturais.
A Europa enfrenta uma “crise de sobrevivência” — a expressão também é sua. Falou da questão das lideranças. As crises, normalmente, são os momentos em que os líderes se revelam. Não estamos a ver isto.
Mas deixe-me ainda fazer um pequeno desvio. A Europa tem de corresponder a um projecto. Havia um projecto europeu nos anos 1950, depois, em várias fases do processo de construção europeia, houve o projecto europeu de Giscard d’Estaing [Presidente da França, entre 1974 e 1981] de Helmut Schimdt [chanceler da Alemanha, entre 1974 e 1982] e o projecto europeu de François Mitterrand [Presidente da França, entre 1981 e 1995] e de Helmut Kohl [chanceler da Alemanha, entre 1982 e 1998]. E, de repente, deixou de haver projecto europeu. O último que existiu foi corporizado pela senhora Merkel — um projecto muito alemão, mais do que um projecto do eixo Paris-Berlim, porque, a certa altura, passou a existir apenas o eixo Berlim-Berlim, devido à fraqueza da componente Paris.
Mas a eleição de Emmanuel Macron vem alterar essa realidade.
Mas antes ainda o projecto. Que a Europa continua a ser fundamental, sobre isso não há dúvida. E é fundamental porque ainda é e será por muito tempo o lugar geométrico de maior desenvolvimento humano de todo o mundo. Onde existem padrões de vida que, da óptica dos indicadores de desenvolvimento humano, encontramos em maior número de economias, sociedades, países no topo desse ranking. Continua a ser fundamental no seu papel no mundo, porque faz pontes que mais ninguém faz. Conhece continentes que outros não conhecem. Consegue relacionar quem entre si se não relaciona. E isso é insubstituível e, já agora, para nós portugueses, é crucial porque a nossa democracia nasceu e tem existido no quadro europeu. Mas precisa de um projecto que não é apenas a afirmação de que é necessário que exista, é a afirmação de que exista unida, de que exista unida com uma capacidade de integração política interna e de afirmação política externa correspondente ao peso que ainda tem no comércio mundial.
Mas também com a sensação de que interessa aos cidadãos europeus.
Já lá vamos. Que ainda tem. Quando o G7 se reunir daqui por 10 ou 20 anos, se a Europa não levar por diante o seu projecto de integração, não haverá praticamente países europeus nessas cimeiras.
Talvez a Alemanha.
E, depois, veremos o que sobra do Reino Unido. Essa Europa tem de ser uma Europa dos cidadãos. Ou é uma Europa em que as pessoas se revêem ou não é Europa nenhuma. A razão de ser da sua existência são as pessoas. Se as pessoas deixam de considerar que ela…
… é útil e importante para a sua vida…
Olham para ela como uma “quantidade” negligenciável. Este projecto, assim, implica, rapidamente, uma capacidade de afirmação política, de construção económica e financeira, e não apenas monetária.
E uma dimensão social…
E uma participação e uma componente social que diz respeito à vida do dia-a-dia dos cidadãos. É esta Europa que deve ser o projecto que vivemos neste século XXI.
A crise do euro, com as suas consequências, abriu uma profunda divisão entre o Norte e o Sul que, em alguns momentos mais dramáticos da crise, chegou quase a ser preconceituosa.
E que agora se agrava porque há outras clivagens.
Mas, em relação ao Norte-Sul, parece óbvio que, se houver um conjunto de países da zona euro que perde quase sempre e outro que ganha quase sempre, é difícil encarar o futuro com optimismo. A conclusão da reforma da zona euro parece-lhe fundamental para travar esta tendência?
Fundamental. Quando o Presidente Macron aparece, com ele ressurge a ideia de um eixo Paris-Berlim, tanto mais útil quanto Berlim era menos Berlim do que foi noutros tempos e era preciso equilibrar uma liderança menos vigorosa, que precisava de ser renovada através do rejuvenescimento de uma liderança jovem e vigorosa francesa. Mas devo confessar que foi com alguma estupefacção que fui assistindo a dois fenómenos preocupantes. O primeiro, a dificuldade substancial de sintonia entre Berlim e Paris. Que tem de ser dupla: de ideias e de empatia pessoal. Quando se fica com a convicção de que essa sintonia não é tão forte como poderia ser num plano e noutro, isso não é uma boa notícia. Mas há mais. As últimas posições do Presidente Macron omitem o reforço da zona euro.
Porque cedeu às pressões da Alemanha?
Mas isso, que era algo de promissor, de repente retirou fôlego ao contributo específico francês. Se o preço dessa realidade for, apesar de tudo, algum avanço em termos orçamentais na zona euro, diria que é o que é possível nesta 25.ª hora. Porque já estamos na 25.ª hora, estamos a dois meses das eleições europeias e, portanto, de uma nova Comissão. Se for esse o preço, já estamos ao nível dos mínimos olímpicos. Se nem sequer isso for conseguido, então aí seria uma enorme frustração.
E as lideranças que deixámos para trás?
Não é possível haver lideranças europeias fortes com lideranças nacionais fracas. E, neste momento, os sistemas políticos, a começar nos partidários, estão fracos um pouco por toda a Europa. Em dois sentidos. Estão fracos porque as duas grandes famílias que estiveram na base da construção europeia estão enfraquecidas — uma está fraca porque está mais pequena do que foi, a socialista; outra está fraca porque está mais dividida do que foi. Mas há ainda outra razão. O que emergiu não é tão europeu ou europeísta quanto aquilo que submergiu. Do que emergiu, ainda não se sabe se é transitório ou está para durar e como, mas já se sabe que, em pontos essenciais, debilita mais os sistemas internos do que os fortalece. É mais um ruído e uma dor de cabeça. É mais difícil a construção europeia com mais clivagens que decorrem da situação interna. E não estou com isso a fazer aquela análise que, por vezes, diz que temos de acabar com essas novas realidades políticas. Só há uma maneira de lutar contra elas: lutar contra as causas que determinaram o seu surgimento. De outra forma, a luta retórica ou verbal é completamente ineficaz.
Já referiu o “Brexit”. É outra machadada?
Tínhamos uma Europa onde havia o contributo britânico, fortíssimo. Estamos agora a tentar remendar as consequências, para uns e outros, do exercício respeitável porque legítimo da soberania britânica, mas que tem consequências óbvias. E remendar significa, neste momento, tentar encontrar uma solução de ganhar tempo e quanto mais tempo melhor — o ideal seria até ao fim do ano que vem —, para permitir mais reflexão no Reino Unido com a colaboração da União Europeia.
Mas admite que o “Brexit” retira uma fatia de poder enorme à Europa.
Isso é evidente. O que se pode é tentar minimizar os seus efeitos. Apesar de tudo, na defesa, segurança, combate ao terrorismo, informações, colaboração externa, ligação a África, na tentativa de reatar laços com os EUA, no posicionamento perante a Rússia e a China, tentar manter o máximo possível do que há em comum. E no plano económico e financeiro encontrar também a modalidade de minimizar as consequências negativas para um lado e para o outro. E, no plano não menos importante do humano e do social, tentar fazer aquilo que Portugal vai fazer: salvaguardar os direitos dos britânicos cá e esperar reciprocidade de lá.
Quando olhamos para o caos político que se instalou no Reino Unido, é mais um sinal da crise que vivem hoje as democracias liberais, mesmo naquela que considerávamos muito forte?
O que eu disse sobre a crise dos sistemas políticos e sociais cobre o Reino Unido e todas as democracias. Há outros factores que têm que ver com a dificuldade de a democracia representativa — que foi concebida para um outro tempo e espaço — se ajustar a este tempo aceleradíssimo e a este espaço global. Concebida para ser representativa e não directa ou semidirecta, ajustar-se a pulsões directas e inorgânicas crescentes. Concebida para ter filtros e intermediações, ter agora de ajustar-se a um panorama mediático com a democracia electrónica e o convite ou, pelo menos, o sonho da intervenção permanente, instantânea e determinante de todos na decisão de tudo, quando os seus mecanismos democráticos estão concebidos para o oposto.
As instituições europeias fecham em Agosto — é o contraste total com a realidade. Há mercados a funcionar em Agosto, há crises em Agosto, há problemas políticos, económicos sociais em Agosto. Mas também é um problema nacional.
Há 20 anos, como se lembra, debatíamos as consequências negativas da mediatização da política e ainda nos referíamos apenas aos media tradicionais. Hoje estamos a defender os media tradicionais contra as redes sociais.
A realidade ultrapassou tudo isso. Os media tradicionais entraram em crise. Em muitos países, a imprensa tradicional, que era mais reflexiva do que as rádios ou a televisão — entrou em crise. Mas mesmo a rádio e a televisão…
… já são ultrapassadas por essa nova forma de comunicar dos cidadãos.
Pelos meios de comunicação electrónicos. É um novo desafio complicadíssimo para as instituições políticas.
Está a decorrer um congresso do PPE [quarta-feira, dia 20 de Março] onde se põe a questão da saída do Fidesz, o partido do primeiro-ministro húngaro, Viktor Orbán. Pensa que tem havido excesso de complacência em relação a partidos como os que governam a Hungria ou a Polónia, que não respeitam os valores fundamentais em que assenta a União Europeia?
Dou muita importância aos valores porque a Europa ou é um projecto de valores ou não é nada. Também dou muita importância à pedagogia, e a Europa não tem feito pedagogia. Julgou que bastava haver política orçamental, haver alguma coisa de política económica e alguma coisinha de política social, que era suficiente para dispensar a presença dos valores.
E não é.
Não é. Sem valores, não há fronteiras e, não havendo fronteiras, é difícil saber onde se pára. Pára-se aqui? Pára-se ali? Um pouco mais à frente? Mas é uma questão que não deve ser tratada a pensar no caso A, B, C ou D, mas num plano geral e abstracto. Essa ponderação em termos gerais e abstractos que, nos Estados, cabe aos tribunais — são eles que têm a última palavra a dizer sobre as condutas que respeitam ou não os grandes valores das constituições —, vamos ter de clarificar, mais dia, menos dia, quem, a nível da União, tem uma palavra a dizer sobre isso. Para não haver a acusação de serem os parlamentos ou os governos, de acordo com fórmulas políticas. Ou, então, esta fórmula que agora surgiu e que me parece muito complexa, que é a constituição de comités de sábios ou de comités independentes parajurisdicionais que viriam a fazer uma espécie de balanço anual — tal como existe o semestre europeu, uma espécie de semestre europeu do estado de saúde das democracias dentro da União.
Não lhe parece que seja esse o caminho?
Creio que deve ser o reforço do poder jurisdicional. Ninguém descobriu um melhor sistema em democracia do que haver um poder jurisdicional verdadeiramente independente, isento, que salvaguarde os valores ditos estruturantes ou constitucionais.
Voltando aos desafios externos da Europa, haverá um pós-Trump que pode repor a relação transatlântica nos seus termos anteriores?
Não tenho dúvidas sobre isso. Um dos desafios mais inextricáveis das relações entre a Europa e os EUA é que há um duplo discurso e há, se quiser, uma dupla estratégia. Por um lado, há o discurso do afastamento num plano comercial, no plano económico e também naquilo que, do lado de lá do Atlântico, se considera deverem ser as lideranças europeias ideais. Depois, há outro discurso sobre a defesa, a segurança e os laços comuns em alguns domínios da intervenção no mundo. Mas, antes disso, houve um tempo em que havia, pelo menos, dois ruídos que não facilitavam a fluidez do entendimento. O primeiro era em relação à Federação Russa. Qual era o adversário principal da Aliança Atlântica? Mesmo como aliança defensiva, o inimigo era o Pacto de Varsóvia, portanto, a União Soviética e os seus aliados. Depois, apareceu recentemente como preocupação cimeira o Daesh. E isto significava que era importante mobilizar todas as forças e todos os países contra o Daesh, incluindo a Federação Russa. E Portugal está muito à vontade, porque, sendo muito constante na sua relação com os EUA, manteve sempre o diálogo natural com outras realidades e outros Estados, incluindo a Rússia. Mas havia essa dúvida no quadro da Aliança Atlântica, deixando de fazer sentido qualquer preocupação específica no relacionamento com o vizinho mais poderoso da Europa.
Entretanto, isso tudo mudou completamente, graças às intervenções da Rússia nos países vizinhos.
Acontece que o Daesh está, pelo menos aparentemente, em vias de extinção.
E a Rússia continua a invadir países.
O que significa que há um problema de explicitação de discurso, que é muito claro em termos de chefias militares e de algumas chefias políticas, mas nem sempre é tão compreensível noutras instâncias. O segundo problema é este: é evidente que a Aliança Atlântica é uma realidade que exige o comprometimento de todos os seus membros, a começar pelo comprometimento financeiro. Não é possível termos uma situação em que há um parceiro que paga praticamente tudo e os outros que se encontram dispensados de pagar.
E quem paga é quem tem de garantir a segurança de todos.
Não é justo. É o que também digo quando se fala do exército europeu: quem quer um exército tem de ter dinheiro para o pagar. Quem não tem dinheiro para pagar alguns sonhos tem de baixar o nível dos sonhos. Outra coisa é converter a questão dos contributos financeiros na questão principal de debate no quadro da Aliança Atlântica.
Que é o que, aparentemente, tem acontecido.
Para quem vê de fora, fica-se com a sensação de que é um tema tão importante que não passa para fora o que é verdadeiramente importante. Porquê a Aliança Atlântica? Porquê a Aliança Atlântica atenta ao Sul, mesmo que também ao Leste e ao Norte? Porquê a Aliança Atlântica olhar para novas realidades, por exemplo, a cibernáutica? Porquê a Aliança Atlântica a ter de olhar para os novos sistemas políticos que existem hoje na Europa? Mas tem de haver aí alguma clareza para o cidadão comum. Hoje, já não faz sentido conceber as organizações internacionais como se não houvesse povos. Isto existe e, se os povos não perceberem, o problema é dos povos. Um exemplo. Esta semana, a notícia foi a possibilidade, aventada pelos EUA, de o Brasil se juntar à Aliança Atlântica. Eu até achei muito curioso, porque era quase uma espécie de elogio póstumo ao salazarismo. Por razões que tinham que ver com a política africana do regime anterior, foi um grande cavalo de batalha de Portugal nesses anos a extensão a África e ao hemisfério Sul de, pelo menos, algumas das preocupações da Aliança Atlântica. Mas, quando agora se fala na extensão ao Atlântico sul, até há que notar um aspecto positivo: perceber-se a importância do Atlântico sul, a ligação entre Atlântico norte e Atlântico sul, que Portugal tem defendido. Deve haver uma estratégia para todo o Atlântico.
Mas não na forma como o Presidente americano a formulou?
Se é assim, então que se assuma como uma viragem estratégica para que possa ter um afloramento — o que, para nós, até faz sentido porque se trata de um país irmão…
Mas a NATO tem as “Parcerias para a Paz” com vários países que não são membros e também pode ter com o Brasil.
Mas pode fazer sentido numa reformulação estratégica muito mais ambiciosa. Tem é de ser uma opção global.
O outro grande elefante na sala chama-se “China. Até recentemente, a União Europeia encarava as relações com a China do ponto de vista estritamente comercial. A China começou a investir na Europa…
A Europa quis investir na China.
Mas hoje o debate evoluiu e começaram a tocar campainhas, sobretudo em Paris e em Berlim, onde se passou a ver a China com outros olhos. Há, por exemplo, novas medidas de monitorização do investimento chinês. Como é que vê a situação actual?
Como sabe, em Portugal há uma só política externa e, portanto, a política externa do Governo é a do Presidente.
Estou a falar da política mais geral da Europa.
Já vou à Europa. Uma coisa são alianças, outra coisa são parcerias. Com os EUA, há uma aliança, como há com o Canadá. Com a China, há uma parceria, não há uma aliança. É assim que deve ser entendida a posição de Portugal em relação à iniciativa Uma Faixa, Uma Rota [Belt and Road Iniciative]. E as parcerias têm virtualidades e têm limites. Perguntar-se-á: mas, no quadro europeu, Portugal não foi mais longe do que outros parceiros europeus? Há outros parceiros europeus que foram mais longe, mesmo no Sul da Europa.
E não apenas no Leste.
Mas o que eu tenho dito a alguns aliados nossos que, de vez em quando, de forma mais diplomática ou menos diplomática, recriminam Portugal por essa parceria se traduzir em sectores relevantes da economia portuguesa, que naquela altura os nossos aliados não apareceram. Foi sugerido uma, duas, três vezes que aparecessem e não apareceram. E, como a política e a economia têm horror ao vazio, o vazio foi preenchido. Penso que, no quadro europeu, também funciona esta distinção. A Europa tem aliados e tem parceiros. A China deve ser considerada um parceiro e não um aliado.
Não vê, portanto, o sintoma de alguma tentação proteccionista por parte de algumas grandes economias europeias?
Nessas economias, há proteccionismo em todos os azimutes. Há proteccionismos que têm que ver com a dimensão que têm e de ainda não haver uma estratégia comum, como se vê no debate sobre os gigantes europeus… Aí, ainda não há um acordo europeu sobre os chamados “campeões europeus”.
Mas há uma grande pressão em Berlim e em Paris para que se comecem a proteger, alegando a concorrência dos gigantes chineses e americanos. Isso faz sentido?
Eu diria o seguinte: o que faz sentido é dar os passos imediatos na União Económica e Monetária em vários domínios que é preciso decidir agora, antes das eleições europeias, porque significa perder tempo e, em alguns domínios, perdê-lo irreversivelmente. Mas faz também sentido que o debate sobre os “campeões europeus” se faça abertamente no quadro da União. Não deve ser uma tomada de posição isolada de A, B ou C, mas ser uma realidade assumida pela União, se porventura entender que é adequada para o conjunto dos seus países. E isto tem que ver com a coesão interna da União Europeia. A União tem de ser coesa e essa coesão tem de ser também económica e social, e não apenas política — ou seja, deve ser equacionada quando se faz uma opção estratégica sobre as relações com o exterior.
Vivemos em Portugal uma situação privilegiada. Não temos manifestações de partidos extremistas e populistas. O nosso sistema partidário revela uma resistência notável. Tem uma explicação?
Deve-se a vários factores, que têm que ver com o facto de sermos uma democracia nova, ao peso que têm certas realidades como o poder local, a rede de instituições de solidariedade social, que foi muito importante em período de crise. Deve-se ao facto de haver partidos à esquerda que, desde sempre, cobriram — de uma forma muito institucional, uns, e de uma forma menos institucional, outros — o espaço que poderia ser ocupado por populismos de esquerda. Deve-se ao frentismo dos partidos de direita, nomeadamente o PSD, que é um partido muito frentista e, portanto, sempre teve uma ala social-popular forte, que absorvia as tensões que poderiam ir parar ao populismo. E o CDS, que recentemente tentou também entrar nesse frentismo e realizá-lo à escala do seu espaço de intervenção. Deve-se à plasticidade do PS, que tem vivências mais ao centro ou mais à esquerda, conforme as circunstâncias. Deve-se ao papel da comunicação social clássica. Mas eu daria muita importância à proximidade do poder local, à plasticidade do sistema de partidos e a uma rede social que intervém supletivamente em períodos de crise, impedindo que se vá até patamares de risco de pobreza e de pobreza que se tornem intoleráveis.
Não vê sinais de mudança nessa realidade que descreveu?
Vejo, não tanto de que esteja a mudar, mas de que há já erupções disso aqui e ali. Multiplicaram-se os movimentos inorgânicos. Há hoje fenómenos sociolaborais à margem dos parceiros económicos e sociais clássicos. Há movimentos de opinião à margem dos partidos políticos. A forma de os partidos lidarem com esta democracia mediática e com as novas formas de comunicação ainda é muito incipiente. Encontramos aqui e ali apelos — sem sucesso, é verdade — para copiar fenómenos externos. O efeito de imitação pode funcionar. O que aconteceu foi que até agora as várias componentes do sistema têm sabido encontrar respostas. E essas respostas são variáveis. São mudanças estratégicas dos partidos, são alargamentos frentistas dos partidos, são novas formações partidárias. Veja que a matriz originária do sistema político está cá, mas completada. Estão cá o PS e o PSD? Estão. Estão cá o PCP e o CDS? Estão. Mas há o Bloco de Esquerda, que não existia. Há, na CDU, a componente Verde mais autónoma. Veja que há agora novas formações que obrigam aquelas de que saíram a ajustarem-se a esse novo desafio. Veja como as centrais sindicais e patronais estão a tentar reajustar-se aos desafios de sindicatos independentes ou movimentos de contestação inorgânicos. Os novos desafios implicam novas respostas.
A Europa continua a ser o nosso espaço vital por excelência?
A Europa continua a ser fundamental para Portugal e a melhor prova disso é que, mesmo os partidos mais reticentes em relação à Europa, são hoje reticentes em relação a políticas e a práticas europeias, mas não à União Europeia.