Nas obras públicas “a colonização portuguesa fez-se sobretudo de pequenos gestos”
São centenas de documentos inéditos, entre relatórios, mapas, gráficos, cadernos de campo e fotografias. Abarcam 100 anos da colonização portuguesa em Moçambique e Angola e podem ver-se em Lisboa até 18 de Abril. Com visitas guiadas e workshops apetecíveis.
Nada como começar de pequeno a perceber que há Histórias Que a História não Conta, mesmo quando fazem parte de um passado relativamente próximo, tão próximo que é ainda possível falar com alguns dos seus protagonistas. Levar os mais jovens, entre os seis e os 12 anos, e as suas famílias a olharem para uma pequena fracção da história de Portugal e do mundo a partir da exposição Colonizing Africa: Relatórios das Obras Públicas em Angola e Moçambique (1875-1975) — até 18 de Abril no Arquivo Histórico Ultramarino (AHU), em Lisboa — é precisamente o que propõem a visita guiada (15h) e o workshop que Rita Pedro, habituada a trabalhar a Filosofia e os temas da colonização com crianças, conduz este sábado no Palácio da Ega, à Junqueira, um edifício que só por si vale a visita.
A ideia destas duas iniciativas, bem como das outras visitas guiadas programadas, é abrir o projecto de investigação que está na base de Colonizing Africa ao público em geral, contribuindo ao mesmo tempo para o estudo e organização de parte do vastíssimo acervo do AHU, explica Ana Vaz Milheiro, arquitecta e comissária da exposição.
Rita Pedro vai procurar reflectir sobre alguns preconceitos a partir da conversa à volta de palavras como “ditadura”, “colonato”, “raça” ou “melanina”, mostrando que não nascemos racistas, mas que corremos o risco de nos tornarmos racistas, se não soubermos desconstruir muitas das realidades que nos são apresentadas.
Vaz Milheiro, também crítica de arquitectura do PÚBLICO, tem vindo a dedicar boa parte da sua carreira como investigadora ao património edificado nas antigas colónias portuguesas em África, sempre com a preocupação de fazer com que os seus projectos financiados pela Fundação para a Ciência e Tecnologia cheguem a um público não exclusivamente académico através de livros e exposições.
É precisamente essa a intenção do projecto Coast to Coast, que estuda a paisagem colonial e pós-colonial nos domínios da arquitectura, infra-estruturas e cidades, e que tem vindo a estabelecer uma colaboração sólida entre a universidade e o Arquivo Histórico Ultramarino, que desde 2015 está na esfera da Direcção-Geral do Livro, Bibliotecas e Arquivos, e que é dirigido por Ana Canas há 14 anos.
“Exposições como esta, que nos permitem abrir esta casa e ainda por cima descrever e pôr em ordem documentação que ainda não tínhamos tido meios financeiros nem humanos para tratar são fundamentais”, reconhece ao PÚBLICO esta directora, chamando a atenção para as centenas de documentos inéditos sobre portos, caminhos-de-ferro, escolas e outros edifícios públicos que agora podem ser vistos nas vitrinas da imponente Sala Pompeia, de paredes e tectos pintados e grandes janelas para o jardim.
Para lá chegar, o visitante passou já pelo andar térreo do palácio, onde uma série de placards mostra algumas das principais obras feitas em Angola e Moçambique entre 1875, ano da criação da Sociedade de Geografia de Lisboa, e 1975, ano das independências destas ex-províncias ultramarinas. A exposição reúne, assim, 100 anos de relatórios técnicos, mapas, gráficos, cadernos de campo e outros documentos que permitiram dar um grande enfoque à mã-de-obra, à força de trabalho, assegura Vaz Milheiro.
“No final do século XIX a Europa conhece ainda muito mal África, apesar de tudo. Não sabe realmente o que está a dividir na Conferência de Berlim”, diz esta professora universitária. “Aqui olhamos para o que se foi fazendo na ferrovia, nos portos, na rede viária, com todas aquelas pontes, olhamos para os aeroportos, para as hídricas, tudo através das fotografias e de centenas de outros documentos, na sua maioria inéditos.”
Através deles se percebe, acrescenta, que a colonização portuguesa em África não se fez por norma de grandes obras como a hidroeléctrica de Cahora Bassa, “que teve um impacto ambiental brutal”, mas de bairros, escolas, postos de saúde, pontões de betão armado que vêm substituir os de madeira e ali ficam, na paisagem, à espera que a estrada chegue. “Aqui vemos que a colonização precisou de tempo e se fez sobretudo de pequenos gestos”, garante, assumindo em seguida que Portugal está pelo menos 20 anos atrasado no tratamento deste tipo de documentação que servirá para que os colegas nas universidades africanas aprofundem o estudo que têm vindo a fazer sobre a forma como estas infra-estruturas deixadas pelo colonizador condicionaram o desenvolvimento dos países depois das independências.
Sem propaganda
Na base desta exposição estão 64 relatórios e cerca de 1300 fotografias, as mais antigas de finais do século XIX, que estarão em breve disponíveis online, na base de dados arquivística da DGLAB-AHU, garante Ana Canas. “Na exposição mostramos 114 destas imagens, que são também elas material técnico”, precisa Vaz Milheiro. São tiradas sem qualquer propósito artístico ou propagandístico. “O objectivo é mostrar como está a decorrer a obra, que avanços foram feitos, que dificuldades encontraram ou que soluções usaram aqui e ali.”
Com os relatórios passa-se o mesmo. Nos primeiros, de finais do século XIX até 1930, os textos têm um tom mais pessoal, mas no pós-Segunda Guerra tudo muda, explica Vaz Milheiro. Nos primeiros há quem se queixe da falta de maquinaria, de dinheiro e quem faça até um elogio ao chefe, mas depois tornam-se cada vez mais técnicos.
Lendo alguns dos excertos de relatórios à disposição, que também se podem ouvir nesta exposição na voz da actriz Lucília Raimundo que vai saindo das colunas de uma espécie de instalação improvisada (os custos foram “muito controlados”, justifica Vaz Milheiro), percebe-se, por exemplo, que no final do século XIX, inícios do XX, muitos dos trabalhadores brancos que estavam nas obras públicas nas colónias cumpriam pena e eram sujeitos a uma disciplina rigorosa; percebe-se ainda que aos africanos eram confiadas tarefas de menor especialização, muitas vezes sob a orientação de portugueses vindos da “metrópole”.
“Entre os indígenas, dificilmente se encontram operários aptos em qualquer mister que não seja o de carpinteiro, pedreiro, ferreiro e ainda assim para estes quase sempre é necessário a direcção de um operário branco. Os trabalhadores e serventes são d’ordinário recrutados entre os indígenas”, lê-se num relatório da viragem do século (1900-19001).
Noutro, de 1914, defende-se que é preciso um arquitecto para desenhar edifícios para uma cidade como Lourenço Marques, acrescentando-se em seguida que há que pagar-lhe mais do que 2520$00. “É efectivamente necessário ser muito persistente para não esmorecer, como a tantos outros tem sucedido (…). As Obras Públicas de Angola continuam sem dotação condigna e quase sem pessoal. Quando se julga completar o seu pessoal de engenheiros, faltam condutores; e quando há condutores, faltam engenheiros”, escreve-se num relatório de inspecção ao distrito de Benguela, em 1915.
“Com o Estado Novo estes documentos são cada vez mais distanciados. Podemos fazer deles uma leitura ideológica, mas será sempre uma interpretação nossa — nada neles tem essa intenção”, explica Vaz Milheiro.
O que contam as fotografias
Nas fotografias vê-se bem, pela roupa que vestem, a diferença hierárquica entre os operários brancos e negros, tantas vezes descalços e em tronco nu, e ainda mais entre os engenheiros, sempre oriundos da chamada “metrópole”, impecáveis nos seus fatos e às vezes até com os tradicionais chapéus coloniais, e os restantes trabalhadores.
“Não há qualquer informação nestes relatórios sobre trabalhos forçados, mas é óbvio que existiam e que há uma segregação entre brancos e negros, entre europeus e africanos”, diz Vaz Milheiro. O capataz é sempre branco, assim como a maioria dos operários especializados. São os negros que fazem os trabalhos mais indiferenciados e que ganham muito menos do que os outros, em média “um pouco acima de metade do salário dos brancos” para a mesma função. “Não há dúvida quanto à hierarquia na obra. São os brancos que mandam e isso pode ver-se, por exemplo, nas folhas de pagamento que constam dos relatórios.” Num dos referentes à construção do caminho-de-ferro da Baía dos Tigres é dito que um “carpinteiro europeu” ganha 12$50 e um “indígena” 7$00.
Lembra a coordenadora da exposição que o primeiro engenheiro negro de que há registo é o cabo-verdiano Pedro Gregório Lopes, que trabalhava nas Obras Públicas pelo menos a partir de 1959. “Em Angola e em Moçambique ainda não encontrámos nenhum, mas, a existir, será a partir dos anos 1950. Mas os engenheiros portugueses nunca diriam que o colega era africano…”
O que não se vê na esmagadora maioria destas fotografias é mulheres e crianças (“em Cabo Verde trabalhavam nas obras, mas aqui não”) e nos relatórios também não há qualquer referência à guerra colonial. “A visão das Obras Públicas é uma visão de continuidade. A guerra é uma interrupção nessa visão. Nos relatórios do Arquivo Salazar, da Torre do Tombo, haverá essas referências, assim como à condição do operário negro. O que quero estudar em seguida é a relação da guerra com o território.”
Ana Vaz Milheiro e a equipa com que trabalha, de que faz parte a arquivista e doutoranda Beatriz Serrazina, procuraram tratar os materiais que agora se podem ver no Palácio da Ega e que estarão em breve disponíveis online libertando-os de qualquer carga interpretativa. “Não queremos dizer que quem se dedica à história da arquitectura não deva preocupar-se com as condições de trabalho dos operários africanos, mas esta exposição é uma primeira abordagem. Trata-se de tornar acessíveis estes materiais ao público e a outros investigadores, nomeadamente aos das ciências sociais, mais preparados para lidar com estas temáticas.”
Muitas das infra-estruturas construídas nas antigas colónias de Moçambique e Angola estão ainda a uso, diz a comissária, estando a ser renovadas ou tendo sido reabilitadas nos últimos anos. Só as aeronáuticas foram na sua maioria abandonadas, porque ficaram completamente obsoletas. “É preciso estudar o impacto ambiental, social e político destas obras, sobretudo as maiores, como Cahora Bassa, para compreendermos melhor a colonização”, conclui a arquitecta e investigadora.
Quem quiser ir ao Palácio da Ega até 18 de Abril tem ainda dois momentos privilegiados para o fazer: as visitas guiadas de dia 6, com José Pedro Monteiro (historiador, Universidade de Coimbra) e Peter Scriver (historiador de arquitectura e especialista em estudos pós-coloniais, Universidade de Adelaide, Austrália); e de dia 13, com Johan Lagae (historiador de arquitectura do século XX, em particular contextos não europeus, Universidade de Ghent, Bélgica).