Todas as jamantas e milhares de mergulhos, dos Açores para o mundo
Uma base de dados de jamantas em águas açorianas, construída a partir de foto-identificação captada por cidadãos-cientistas: o Manta Catalog Azores é da autoria da bióloga Ana Filipa Sobral e quer conhecer e ajudar a conservar todas as jamantas dos Açores (e quiçá do mundo). Venceu o segundo lugar do prémio Terre de Femmes, da Fundação Yves Rocher.
Ana Filipa Sobral tinha nove anos quando viu jamantas pela primeira vez. Corria o ano de 1998 e, por esta altura, a bióloga marinha já sabia que o queria ser — só não sabia que o estudo destes animais lhe iria valer o segundo lugar do prémio Terre de Femmes, promovido pela Fundação Yves Rocher. Passaram-se nove anos desde o primeiro contacto com jamantas, até que as reencontrou em Moçambique, desta vez fora dos corredores do oceanário e sem vidros gigantes a separá-las. E, por essa altura, nem era para as ver que mergulhava.
Foi já com uma licenciatura em Biologia que Ana Filipa viajou para África, em 2010, para um programa de voluntariado centrado no estudo dos tubarões-baleia. Acabou por voltar interessada nas jamantas. “São animais misteriosos”, refere. E foram estes “gigantes gentis” que, em 2011, fizeram a bióloga trocar Grândola, em Setúbal, pelos Açores, para iniciar um mestrado em que são os protagonistas e, em 2012, criar o Manta Catalog Azores: uma base de dados que pretende aumentar o conhecimento acerca destas espécies, sobre as quais ainda se sabe “muito pouco”.
A investigação baseia-se essencialmente na ciência cidadã, a partir de fotografias e informações fornecidas por mergulhadores e centros de mergulho da ilha, que preenchem os formulários que a bióloga prepara e distribui no início da época de mergulho. Os dados recolhidos até agora — dois mil mergulhos entre 2012 e 2017, cerca de cinco mil fotos e 62 horas de vídeo captado entre 1990 e 2018 — permitiram, por exemplo, criar a primeira base de dados do mundo de foto-identificação de mobulideos nos Açores e de jamanta-chilena (Mobula tarapacana) do mundo.
Os dados permitiram desvendar alguns comportamentos dos animais. Os Açores “são um dos únicos locais do mundo onde esta espécie [jamanta-chilena] forma grandes grupos”, mas não se sabe o porquê. As populações podem ser vistas ao longo de todo o arquipélago, mas formam agregações no monte submarino do Ambrósio e Princesa Alice. Nestes locais, são frequentemente avistadas fêmeas grávidas, o que pode significar que têm “alguma importância em termos de reprodução, que pode ser a proximidade de algum local para dar à luz ou relevante em termos de socialização”.
“A foto-identificação cria a oportunidade de envolver o público nos projectos e beneficia os investigadores, aumentando a quantidade e extensão geográfica dos dados disponíveis”, afirma Ana Filipa Sobral. No caso das jamantas-chilenas, é uma ferramenta fidedigna, uma vez que o padrão ventral “funciona como uma impressão digital” – característica comprovada recentemente, quando um indivíduo voltou a ser identificado nove anos depois do primeiro aparecimento. “À partida, o padrão não sofre nenhuma alteração com o tempo.”
Na base de dados do Manta Catalog Azores, constam 143 indivíduos de jamanta-chilena e 29 de manta-oceânica (Mobula birostris) — ambas as espécies com ocorrência entre Junho e Outubro, registada em anos diferentes, o que reforça a crença de que os montes submarinos constituem, de facto, “habitats importantes”. Devem, então, ser preservados.
Para isso, o Manta Catalog Azores associou-se à Associação Amigos do Mar de Santa Maria e à Manta Trust, para uma campanha que propunha a criação de um santuário de jamantas nas águas à volta de Santa Maria. O abaixo-assinado que lançaram contou com mais de 450 assinaturas da população local, “que já tem noção da importância da preservação desta espécie”. Em Julho de 2018, a petição foi aprovada pelo Governo Regional dos Açores.
Para consciencializar a população mais jovem sobre “a importância dos animais e da sua conservação”, o Manta Catalog Azores faz também acções de sensibilização em escolas da região. No futuro, a bióloga quer alargar o campo do acção e “desenvolver iniciativas de educação com entidades locais e nacionais para promover a investigação e conservação de jamantas, bem como o turismo sustentável”.
“É muito difícil fazer uma pesca sustentável deste tipo de animais”
As jamantas pertencem à família Mobulidae, são “completamente inofensivas” e possuem “os maiores cérebros de todos os peixes”. “São animais que vivem muito tempo, atingem a sua maturidade sexual muito tarde e reproduzem-se com pouca frequência; por isso, são bastante vulneráveis a qualquer tipo de impacto”, resume a bióloga. Dão à luz apenas uma ou duas crias a cada dois a cinco anos e o período de gestação “pode chegar até 12 meses”– o que significa que, se forem retirados adultos de uma população, o tempo de recuperação é muito elevado. Em termos práticos: “É muito difícil fazer uma pesca sustentável deste tipo de animais.”
Actualmente, além da pesca ocidental, estes animais enfrentam uma nova ameaça. “Começaram a ser pescados activamente por causa das suas guelras”, procuradas pela medicina oriental, havendo a crença de que possam ter propriedades que curam doenças. Não há, contudo, “nenhum fundamento científico que comprove” os benefícios das guelras, garante Ana Filipa. E a procura desenfreada levou ao declínio da espécie em mais de 80% em algumas populações.
Os esforços para reverter a situação começam a ser feitos. Em 2016, o Manta Catalog Azores participou na campanha #loveminimantas, lançada pela Manta Trust, cujo objectivo era fazer com que todas as espécies de jamantas conseguissem protecção internacional na conferência da Convenção sobre o Comércio Internacional das Espécies de Fauna e da Flora Selvagens Ameaçadas de Extinção (CITES). “Graças ao esforço conjunto de várias ONG e indivíduos extremamente dedicados”, as espécies passaram a estar listadas no Anexo II da CITES.
Agora, sete anos após a criação do Manta Catalog Azores, o projecto foi distinguido com o segundo lugar na décima edição do prémio Terre de Femmes, promovido pela Fundação Yves Rocher, no valor de cinco mil euros. “Além de credibilidade, [o prémio] vai dar visibilidade ao projecto junto do público, que é quem contribui e tem sido o pilar para o sucesso da investigação”, afirma Ana Filipa. A bióloga espera que o número de participações e a rede de parceiros aumentem.
A reprodutibilidade do projecto é a maior ambição a longo prazo: “Este modelo de recolha de dados [foto-identificação] é facilmente aplicável noutros locais do mundo onde esta espécie [Jamanta Chilena] seja avistada.” Mas também é preciso aumentar a base de dados açoriana e “compreender a importância dos locais de agregação dos Açores”, refere.
Os cinco mil euros de prémio serão uma ajuda para “compra de material, deslocações para acções de sensibilização, criação de materiais de divulgação e educativos e reformulação do site”. O Terre de Femmes distingue projectos a favor do ambiente com assinatura feminina: em 2018, Estrela Matilde conseguiu o primeiro lugar com um negócio de jóias a partir de garrafas de vidro, feitas por mulheres de São Tomé.