Da Argentina, com palavras e vozes de mulher

Ao terceiro disco, a cantora e compositora algarvia Susana Travassos assentou quartel-general na Argentina e gravou um disco onde a voz das mulheres é primordial. Pássaro Palavra tem canções vibrantes dela e de Ana Terra, Déa Trancoso, Luísa Sobral, Melody Gardot ou Mili Vizcaíno.

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Lorena Dini

Dez anos passados sobre o seu disco de estreia (Oi Elis, 2008), a cantora e compositora portuguesa Susana Travassos continua a reforçar laços musicais e afectivos com a América Latina, gravando um disco integralmente na Argentina. Chamou-lhe Pássaro Palavra, e quis com esse título sugerir outro, subentendido: passa a palavra. “Quando imaginei esse trocadilho, não pensei que ele fosse completamente visível”, diz Susana ao Ípsilon. E não passou despercebido, porque há quem lhe fale nisso, na sugestão de palavras que vão passando nesta Palavra que ganhou asas na música.

Mas, antes, começou pelo Brasil: o primeiro disco só tinha músicas do repertório de Elis Regina e, depois dele, gravou ainda Tejo Tietê, parceria com o violonista Chico Saraiva e produzido por Paulo Bellinati (disco que, gravado em 2013, permanece inédito em Portugal), sendo depois escolhida pela compositora brasileira Ana Terra para um espectáculo de homenagem à sua obra, que foi exibido primeiro no Canal Brasil e depois na RTP1. Isso em 2018, o mesmo ano em que ela foi ao Festival da Canção, como cantora, defender a canção Mensageira, de Aline Frazão.

Uma paixão argentina

Mas, apesar das ligações ao Brasil, começou a crescer nela uma paixão pela Argentina. Que tem raízes familiares, porque o avô de Susana (que é algarvia) cantava tangos de Gardel. “Tenho um projecto em trio, gravado em vídeo enquanto viajei pela América Latina, com guitarra portuguesa e violão de sete cordas. Foi aí que comecei a experimentar a música latino-americana junto com o repertório que eu já fazia. Fiz uma tournée que pelo Uruguai, Argentina, Colômbia.” E em Buenos Aires conheceu, por via de contactos que lhe haviam sido passados por músicos brasileiros, vários nomes de relevo. “Por exemplo: a Liliana Herrero, que é uma das maiores cantoras de hoje e que cantou com a Mercedes Sosa. Ou o Alan Plachta, que foi o produtor musical deste meu disco.”

Susana tinha pensado gravá-lo no Brasil, em Portugal e na Argentina. “Mas comecei a ficar com uma relação cada vez mais estreita com Buenos Aires. Até que, estava já a começar as gravações em São Paulo, decidi que o disco não seria gravado lá mas na Argentina. Começou a fazer cada vez mais sentido em termos de sonoridade. E hoje percebo que só poderia ter feito lá.” Não por ser de tangos ou milongas. “Não é um disco de tango, mas tem ali uma impressão digital. Até porque os músicos que gravaram este disco não são do tango, fazem uma música mais jazzística.”

No disco, participam alguns dos melhores instrumentistas da actualidade na Argentina: Alan Plachta (guitarras e produção), Tiki Cantero (percussão), Mariano Malamud (viola), Nacho Amil (piano), Gonzalo Fuertes (contrabaixo), Guilherme Rubino (violino), Santiago Arias (bandoneon) e Paula Pomeraniec (violoncelo). Participa ainda, como convidado, o arranjador e pianista Diego Schissi. “Na verdade, havia um músico que eu queria, que é o Tiki Cantero, percussionista dos Aca Seca, que faz cantos harmónico. Já o Diego Schissi [pianista e arranjador], também desejava que ele participasse, mas achei que era impossível.” Não foi: Alan convidou-o e Diego aceitou.

A voz às mulheres

As canções, sublimadas pela voz bem timbrada de Susana, são sobretudo escritas por mulheres: além dela própria, Ana Terra, Déa Trancoso, Luísa Sobral, Melody Gardot ou Mili Vizcaíno. Mas há também uma composição de Chico César e Chico Pinheiro (Valsa para 3) e um tango antigo e belíssimo dos irmãos Virgilio e Homero Expósito (Naranjo en flor). O alinhamento, porém, só surgiu no fim. “Não foi nada fácil encontrar essa ordem, embora para mim sempre fosse muito natural abrir com o Blues da madrugada [poema de Ana Terra musicado por Fred Martins]. Fiz isto como uma viagem: Não doeu [de Luísa Sobral, sobre violência doméstica] é para chamar a atenção, Mi gitanito dá um pouco de doçura, segue-se uma viagem para o interior [com Luísa e O meu pai] e uma música que fala muito sobre consciência e é exclusiva do disco físico, não está nas plataformas digitais [O corpo, de Déa Trancoso].” A viagem prossegue com um tema que vem de trás: “Fiz um concerto em São Paulo, em 2015, onde convidámos o Chico Pinheiro e o Renato Braz. E essa foi uma das canções que o Chico Pinheiro, que a compôs com o Chico César, disse que eu podia cantar. E de facto apaixonei-me por ela. Há até uma gravação no YouTube. Além disso o Chico César é meu amigo. Foi mais uma maneira de ter o Brasil presente no disco.”

As canções Luísa e O meu pai têm rasto familiar. “Foram ambas compostas quando eu estava no Brasil. São canções que surgem com saudades de casa: uma canção para a minha mãe e outra para o meu pai. Saíram primeiro em forma de poema e depois musiquei-as. Fiz a melodia de Luísa ao piano, com uma ajuda do Marcos Frederico, e O meu pai musiquei-a com o meu acordeão.”

O processo de gravação do CD foi todo registado em vídeo, o que significa que cada canção pode vir a ter, a seu tempo, um vídeo no YouTube. Para já há um EPK e o vídeo oficial de Não doeu (de Luísa Sobral), que chama a atenção para a violência doméstica e foi estreado em Janeiro. Quanto a palcos, o disco já foi apresentado em Lagoa (no Algarve) e na Coreia do Sul e está programado para a edição de 2019 da feira internacional EXIB Música, em Setúbal, de 13 a 15 de Junho.

Enquanto isso, ela continua a trabalhar em vários outros projectos, em particular com o Brasil: “Há umas semanas fui gravar uma música para um disco do Maurício Ribeiro, de Belo Horizonte; e o Zeca Baleiro já me mandou uma canção para eu gravar. Quando penso em espectáculos, tenho o meu iluminador de lá, a minha cenógrafa de lá. Estou em constante contacto com o Brasil.”

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