Os muitos vermelhos que escorrem pelo piano de Filipe Raposo

O pianista apresenta esta sexta-feira no Teatro São Luiz, no âmbito do Festival de Jazz de Lisboa, o disco-livro Ocre, primeiro registo de uma trilogia dedicada às cores.

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Filipe Raposo António Marinho da Silva

Filipe Raposo pertence àqueles criadores para quem a música não existe desligada de todas as artes e de todo o mundo ao seu redor. A cada novo projecto, é natural que faça acompanhar as composições ao piano de uma reflexão e de uma investigação que balizem a criatividade. Mas nunca tinha levado esse pressuposto tão longe quanto agora, ao lançar o primeiro volume de uma trilogia dedicada às cores. Ocre, com apresentação esta sexta-feira em concerto integrado no primeiro Festival de Jazz de Lisboa, a decorrer no Teatro São Luiz até domingo, é um disco-livro com edição da Tinta da China, o primeiro de três ensaios sonoros que hão-de chegar-nos à cadência bienal.

“A cor é algo que sempre me fascinou nas diferentes presenças a nível artístico”, explica o músico ao PÚBLICO. Na música, no cinema, nas artes plásticas ou na fotografia, é uma evidência que transporta, com frequência, leituras simbólicas. E foi, precisamente, ao mergulhar no “universo simbólico artístico” da cor, associado a “uma dimensão mais sociológica e antropológica” que Filipe Raposo começou a pensar como traduzir esta relação para um conjunto de composições. O preto como exemplo de rectidão e de morte, o vermelho como sintoma de sedução ou de violência, o branco como sinal de luz e de pureza, foram imagens que foi acumulando enquanto lia e anotava os livros Preto, História de Uma Cor e Azul, História de Uma Cor (edições Orfeu Negro). Foi durante essas leituras que decidiu explorar tematicamente “as três cores que estão presentes continuamente na sociedade desde a Antiguidade Clássica, sob diversas formas simbólicas”.

Através de uma investigação desenvolvida com o ilustrador António Jorge Gonçalves, acabou por declinar o vermelho no sentido do ocre, “o primeiro pigmento usado no nascimento da arte” e comum nas gravuras rupestres. A questão que então se colocava era como transformar estes conceitos em matéria musical. E Filipe Raposo seguiu as pistas do ocre até perceber que era “o pigmento mais presente à face da Terra”, associando este facto à mitologia judaico-cristã e ao homem inaugural, “o Adão metafórico formado através da terra”. Tudo isto remetia para a matriz popular e tradicional da música, e para “melodias de uma simplicidade aparente enorme, mas que ao mesmo tempo são sínteses centenárias – ou até milenares – de temáticas ligadas ao cancioneiro”. “Melodias que, sem o auxílio das redes sociais, foram transmitidas até chegarem aos nossos dias.”

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Filipe Raposo António Marinho da Silva

Daí que encontremos no alinhamento de Ocre sugestões melódicas colhidas nos cancioneiros de Trás-os-Montes ou do Al-Andalus, mas também da música popular açoriana (por via do ocre vulcânico). O álbum constrói também pontes entre a cultura popular e a erudita, o que leva à coexistência entre Bach e uma melodia tradicional transmontana, ou Monteverdi e um ritmo das Beiras originalmente tocado por um adufe. Mas Ocre, clarifique-se, é um álbum de piano solo. De Filipe Raposo a avançar pelos temas na companhia apenas dessas reflexões acerca das cores.

Endovélico e o fogo

A investigação para Ocre conduziria Filipe Raposo a “uma procura obsessiva pela justificação da cor nos seus símbolos” e às manifestações que foi identificando em várias práticas artísticas. Mas levou-o também a lugares muito concretos, como um local de culto dedicado ao deus Endovélico, construído pelos romanos em São Miguel da Mota, no Alandroal. É atrás dessa figura de Endovélico – divindade ligada aos cultos da terra e das plantações, “pop star dos deuses na Península Ibérica” daquele período – que os dedos do pianista seguem no tema A um Deus desconhecido. A música incorpora a “presença apagaziguadora” que Filipe lhe atribui e desvela-se com uma tranquilidade lírica, em que quase podemos entrever os anos jazzísticos de António Pinho Vargas.

E há ainda o muito cinematográfico Mefistófeles, inspirado pelo “pacto de sangue mais conhecido da Humanidade”, ou o irrequieto No princípio era o fogo, “homenagem aos primeiros homens e às primeiras mulheres” de quem herdámos a tecnologia de ponta ancestral que era a preservação e a fabricação do fogo. É uma imagem de “conhecimento e de curiosidade perante a vida” transportada para a música, evocadora da tocha que avança pela “noite do desconhecido, do medo e dos sons estranhos”, devolvendo uma visão antes impossível.

Ocre, tem formato de disco-livro (e é editado pela Tinta da China), uma maneira de Filipe Raposo convocar ainda para o primeiro momento da sua trilogia uma forte componente visual garantida pelas obras de Sérgio Fernandes, cuja pintura trabalha, precisamente, as pequenas variações de uma cor. Acontece que quando o músico o contactou, o pintor estava precisamente a trabalhar sobre o vermelho. Se é de simbolismo que fala Ocre, tal sinal não podia ser ignorado.

Filipe Raposo apresenta Ocre no São Luiz esta sexta-feira, data em que actua também o Coreto Porta-Jazz. Antes, na quinta, o palco é do Sexteto Bernardo Moreira e de João Barradas com Mark Turner; sábado à tarde é a vez da Big Band Júnior actuar com Inês Laginha, enquanto a noite ficará a cargo de Jeff Williams e da versão alargada da João Lencastre’s Communion; o encerramento, no domingo, cabe à banda trabalhada pelo contrabaixista Greg Cohen no âmbito do workshop do Festival de Jazz de Lisboa.

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