Esta mulher não sente dor – por causa de um só gene
Uma britânica de 71 anos descobriu uma mutação genética no seu ADN que a impede de sentir dor ou desconforto, mesmo em situações extremas. Um grupo de cientistas da University College London descobriu que gene é este, o que faz, e que impacto pode ter na criação de analgésicos para quem vive com dores extremas.
Um grupo de cientistas britânicos descobriu uma nova mutação genética numa mulher que é incapaz de sentir dor ou desconforto. Jo Cameron, de 71 anos, tem uma mutação num gene e que os cientistas acreditam poder desempenhar um papel importante na sinalização da dor, do humor e da memória.
Depois de ter sido submetida a uma cirurgia na mão, operação descrita como “excruciante” por um cirurgião, os médicos avisaram-na que era provável que viesse a sentir alguma dor e desconforto no pós-operatório. Quando Jo Cameron não sentiu nada nem requisitou qualquer tipo de medicamente para a dor, o seu anestesista decidiu reencaminhá-la para um grupo de geneticistas da University College London (UCL) e da Universidade de Oxford.
Cameron uma ex-professora residente em Inverness, cidade da Escócia, já sofreu fracturas em vários membros, bem como cortes e queimaduras. Também deu à luz e foi submetida a várias cirurgias, tudo sem nunca precisar de analgésicos. Ao The Guardian conta que às vezes só se apercebe que se queimou no fogão quando sente o cheiro, e não pela dor que uma queimadura provoca. “Eu sou vegan, então o cheiro é bastante óbvio. Não há outra carne a ser queimada cá em casa”, disse.
No entanto, não é só pela incapacidade de sentir dor que Cameron se destaca a ex-professora também nunca entra em pânico. Quando esteve envolvida num acidente de carro há dois anos, simplesmente saiu do seu carro que tinha capotado numa valeta e foi consolar o jovem contra quem tinha embatido. Só mais tarde notou que tinha feridas e pisaduras.
“Eu sabia que era despreocupada e que tinha sorte [tradução livre], mas não percebi que era diferente até ter 65 anos”, disse Jo Cameron ao The Guardian.
Num relatório publicado esta quinta-feira na revista científica Science Direct e no British Journal of Anesthesia, a equipa da UCL descreve como mergulhou no ADN de Cameron para perceber o que a torna tão diferente. O grupo acabou por encontraram duas mutações notáveis que, por um lado, suprimem a dor e a ansiedade e, por outro, aumentam a felicidade, o esquecimento e a cicatrização de feridas.
O primeiro gene descoberto é comum na população em geral e atenua a actividade da enzima FAAH. O FAAH é a sigla em inglês para a enzima hidrólase das amidas de ácidos gordos, uma proteína fundamental para a metabolização dos endocanabinóides. Produzidos naturalmente pelo organismo, os endocanabinóides funcionam no sistema nervoso central: ligam-se aos receptores (moléculas) das células e têm efeitos fisiológicos no apetite, na sensação de dor, no humor e na memória.
A segunda mutação descoberta acabou por ser uma parte de ADN que faltava a Jo Cameron e que no início fascinou os cientistas. As análises posteriores mostraram que a falta desse gene eliminou também a frente de um gene próximo e desconhecido até àquele momento a que os cientistas chamaram de FAAH-OUT. A equipa acredita que este novo gene funciona como um controlador dos efeitos do FAAH, ou seja, desactiva os endocanabinóides que têm efeitos fisiológicos na sensação de dor, daí que seja complicado para Cameron sentir algum tipo de desconforto.
O resultado é que no caso da mulher de 71 anos, a anandamida, um canabinóide natural, acumula-se no seu sistema, fazendo com que possua duas vezes mais deste tipo de endocanabinóides do que na população em geral. O grupo de moléculas chamadas canabinóides está presente na cannabis, juntamente com mais de 460 substâncias químicas.
Quando os cientistas apresentaram as suas conclusões a Cameron, alguns acidentes que teve quando era jovem fizeram mais sentido. Aos oito anos, partiu um braço e durante dias não contou a ninguém. Só quando o seu osso começou a reposicionar-se num ângulo “esquisito” é que percebeu o que se passava. Também conseguia comer pimenta e malaguetas e sentir apenas um “brilho agradável” na sua boca. As queimaduras com o ferro de engomar também eram constantes, mas as feridas curavam-se com facilidade, conta a ex-professora ao jornal britânico.
Na sua família, apenas o filho parece ter o mesmo gene, uma vez que tanto a sua mãe como a sua filha foram testadas e não parecem ter a mesmo resistência à dor. Os cientistas suspeitam que tenha sido pai de Cameron a passar-lhe o gene.
A pesquisa revela que Cameron sente alguma dor, ainda que mínima, mas existem casos extremos em que o paciente não sente absolutamente nada. Assim que percebam como o gene funciona, o estudo pode levar os investigadores a descobrirem novas formas de produzir analgésicos para doentes que vivem com dores extremas associadas a várias doenças. Além disso, ao falar da sua experiência, Cameron pode servir de mensageira para pessoas que vivam com o mesmo problema e não saibam que são diferentes.