Caídos no vazio
Quem sofre de algo mais “físico” e necessita de um internamento ou baixa, desde que tenha pelo menos seis meses de descontos para a Segurança Social poderá usufruir de uma fracção dos seus rendimentos. O mesmo não acontece para incapacidade devido a doenças mentais a longo prazo.
As patologias psiquiátricas são amplamente discutidas nos dias que correm. À medida que se vai descobrindo mais e se assume que é um problema que carece de grande atenção, sabendo que cada vez mais pessoas passam por depressões ou outras patologias e distúrbios de personalidade, é importante também discutir os apoios que estas pessoas deveriam ter.
Descobri que não existe um subsídio para pessoas portadoras de doenças mentais. Quem sofre de algo mais “físico” e necessita de um internamento ou baixa, desde que tenha pelo menos seis meses de descontos para a Segurança Social poderá usufruir de uma fracção dos seus rendimentos. O mesmo não acontece para incapacidade devido a doenças mentais a longo prazo.
Esquizofrenia. Talvez enquanto a patologia esteja controlada, a pessoa consiga um emprego e tenha chefes compreensivos nas fases em que é necessário parar e procurar ajuda intensiva, isto é, quando surgem surtos e descontrolos, que obviamente não reflectem culpa do paciente. Este tipo de doentes poderá ter limitações dentro até do que seria “socialmente aceitável.” Quando a ansiedade impede manter um trabalho em que lida com o público e impede que se mantenha um emprego e “estabilidade”, o que se pode fazer?
Nos meus círculos tenho pessoas com variadas patologias de ordem mental. Alguns conseguem desempenhar profissões, embora frequentemente com apoio do patronato a falhas de assiduidade e pontualidade. Dentro dessas pessoas há quem consiga trabalhar livremente em qualquer emprego e outras que não. A solução passa muitas vezes pelos trabalhos freelancer, gerindo os próprios horários, lutando diariamente contra as patologias e com a inalienável necessidade de pagar contas, medicamentos, terapias e alimentação.
Poder-se-ia usar as baixas como mecanismos de solução de alturas menos boas, mas uma baixa tem o seu tempo limite e muitas vezes pode resultar em despedimento por justa causa, por múltiplas baixas ou por falta de rendimento. O que acontece então a um doente psiquiátrico quando a baixa não é suficiente, quando não há o apoio dos seis meses de descontos, quando tudo desmorona e não há maneira de trabalhar? É aqui que entramos numa área cinzenta que não abona os doentes mentais.
De modo a que se consiga um pequeno subsídio para (sobre)viver, estas pessoas terão que se apresentar perante uma junta médica, o que é justo, e para que o subsídio lhes seja atribuído é necessário uma incapacidade superior a 60%. É aqui que a minha indignação se acende, porque os 60% ditos físicos não são dados como iguais aos mentais. Hoje um paciente mental pode ter 75% de incapacidade, mas daqui a dois meses ou anos talvez esteja e apto a trabalhar — é impossível prever. A junta esquece-se que nestes casos de flutuações há alturas estáveis e alturas deploráveis.
Existir uma incapacidade dita “válida” dirá que jamais poderão trabalhar, que muitas vezes não é o caso. Estas pessoas poderão, porventura, apenas necessitar de um período de apoio para que possam voltar ao activo, enquanto outras poderão mesmo necessitar de um apoio para a vida. Como podemos provar uma incapacidade devido a uma doença mental? Enquanto podemos falar de hormonas, de cérebros com actividades divergentes, de provas provenientes de profissionais que acompanham cada caso, mas para pessoas neurotípicas não é palpável e até fácil ser forjado.
Há baixa, mas não há subsídios para quem tem patologias psiquiátricas. Como podem então sobreviver aqueles que não conseguem fazer uma vida comum? Apoio de familiares que acabam por vê-los como um fardo, um ser humano de menor valor? O estigma e a enorme falta de informação em torno das doenças mentais são chocantes, e as pessoas doentes caem num vazio existencial em que lidam não só com a sua patologia, ou múltiplas, mas com a incompreensão dos “outros”.
Sabe-se que um número elevado de sem-abrigo são pessoas que têm doenças mentais, não tiveram outra escolha que não desistir da vida social e cair no esquecimento no recanto da estação de comboios e da caixa de cartão que serve de cama. Está comprovado que estas pessoas têm maior probabilidade de perder a rede de apoio e ficar à deriva... Como solucionar? São seres humanos que carecem de apoio franco, é necessário evitar que caiam no álcool e nas drogas como automedicação porque a da farmácia é insustentável, porque manter uma casa pode ser impossível sem apoio externo. Não há, no entanto, subsídio para portadores de doenças mentais, ou assim me foi dito por uma trabalhadora da segurança social. Onde cabem os doentes mentais nesta sociedade?
Não podemos fechar os olhos, e taxar os doentes mentais de sanguessugas do meio social, da segurança social, do Estado — como, aliás, muita gente diz sobre quem usufrui do RSI. Temos de assumir que, por muito parcialmente invisível que seja, esta classe de doenças é real, e mesmo nesses momentos é subestimada.
Existem estudos e investigações comprovando estas patologias. Psiquiatras comprovam e psicólogos tentam reduzir estragos através até do SNS. Por que é que uma doença visivelmente física é superior à doença bipolar? Olhe-se para as provas, entenda-se e aceite-se que estas pessoas precisam de ajuda, e nós estamos a ignora-las, como familiares, como amigos, como profissionais e como sociedade.