Passe Social Único, portugueses de 1.ª, 2.ª e 3.ª
Não sei como o primeiro-ministro António Costa chegou ao brilhante número de 85% da população estar abrangida pelo Passe Social Único. Tenho azar. Apesar de viver no litoral, e de o comboio em Espinho quase beijar o mar, não tenho direito à tão propagandeada redução de preço. Seria só de 50%. Coisa pouca.
A minha tia Maria, uma lisboeta dos pés à cabeça, diz que quem estragou Lisboa foram os que vieram de fora. Se não fosse o amor que tenho pela minha tia mandava-a às malvas. Eu também fui um desses “de fora” que um dia desembarcaram em Santa Apolónia. Só passados 15 anos tirei o bilhete de volta. Entretanto, estudei, arranjei o meu primeiro emprego, comprei casa, casei e fiz dois alfacinhas nascidos no Campo Grande. Mas depois zanguei-me com a cidade da luz bonita. Regressei à província.
Mudar de vida foi fácil. Comecei a plantar alfaces. A respirar melhor. E por estranho que pareça, a ir mais vezes ao CCB. Tenho agora tempo, apesar dos 250 quilómetros que nos separam. Ganhei qualidade de vida. Para isso também contribuiu deixar as filas infernais da A5 a ouvir os The Doors. Troquei o automóvel pelo comboio. Os The Doors não os troco por nada.
Em 23 dias de cada mês, passo 120 minutos diários dentro de uma carruagem amarela e preta conforme a densidade de grafitos. Eu e milhares de pessoas. De todas as profissões, com horários mais ou menos flexíveis. Somos um batalhão. Com sol, chuva, vento, de madrugada ou de noite. Somos os viajantes trabalhadores. Uns olham fixamente para o telemóvel, outros despacham trabalho no portátil. Muito poucos lêem o jornal. Outros abrem a boca e fecham os olhos. Existem os que olham pela janela. Como eu, admirador confesso da genialidade arquitectónica que paira ao longo da linha. Pela viagem, uns vão saindo e outros vão entrando. Os maiores resistentes são os que vão “de ponta a ponta”. Aveiro-São Bento. Eu sou um desses. Desde o início da linha até ao fim, o comboio passa por seis concelhos. O passe social custa 80,45 euros. Ficou com este preço, depois de um aumento desmedido com que Passos Coelho nos brindou.
O esforço tem sido grande. Com o revisor, na bilheteira, nos placares informativos. Ninguém informa. Ninguém sabe se vai haver novos preços. Ou melhor, todos acham que nós, viajantes trabalhadores, que não vivemos numa Área Metropolitana, mas que lá trabalhamos, não temos direito ao Passe Social Único.
Não residimos e trabalhamos dentro de uma Comunidade Intermunicipal? Não residimos e trabalhamos numa Área Metropolitana? Então não temos direito ao Passe Social Único. Mas naquele comboio vão trabalhadores que pagam IRS, IVA, IMI, IUC, IA, Taxas Municipais e um sem fim de impostos. Vão homens e mulheres que contribuem para o Orçamento de Estado. Vão homens e mulheres que optam, e bem, pelo transporte público.
Agora temos três categorias de utilizadores de transportes públicos. Os de 1.ª, de 2.ª e de 3.ª. Os de 1.ª são os contemplados com o Passe Social Único. Os de 2.ª são os que, apesar de usarem o transporte público, lhes vêem vedado o acesso ao fantástico passe. E os de 3.ª, são os que desejam utilizar o transporte público, mas não o podem fazer, porque ele pura e simplesmente não existe.
Não sei como o primeiro-ministro António Costa chegou ao brilhante número de 85% da população estar abrangida pelo Passe Social Único. Tenho azar. Apesar de viver no litoral, e de o comboio em Espinho quase beijar o mar, não tenho direito à tão propagandeada redução de preço. Seria só de 50%. Coisa pouca.
O PCP já tinha como sua bandeira o Passe Social Único vai para 10 anos. Foi um Governo PS a aplicá-la. Concordo com a medida, só não concordo com a desigualdade de acesso. E cá em casa, como milhões de famílias portuguesas, tivemos o garrote no pescoço. Seria mais um merecido alívio no orçamento mensal. Mas pronto, senhor primeiro-ministro, continuaremos a pagar fielmente os nossos impostos. E em Outubro, na hora da cruz, faremos contas. A minha mulher até é professora.