As mulheres do Daesh: vítimas ou cúmplices?

Quando os Estados europeus analisam o regresso dos seus cidadãos daquele palco não podem discriminar entre os géneros. Nenhum pode aceitar receber estas mulheres sem analisar exaustivamente as razões que as conduziram à Síria e o seu percurso até ali.

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Raya Jalabi/Reuters

Nos últimos anos, muito se analisou as deslocações de homens europeus para a Síria para aderirem ao grupo Estado Islâmico (EI) e eventuais consequências para a Europa. Menos se falou sobre o êxodo de mulheres para aquele território a fim de se juntarem a um grupo terrorista: se o envolvimento feminino na militância jihadista não é um fenómeno inédito, a sua dimensão e as motivações reveladas causaram estupefacção. 

Com o quase desaparecimento territorial do califado, milhares de mulheres e filhos de jihadistas chegam aos campos de deslocados na Síria. Pressionados por organizações internacionais, ONGs e pela coligação FDS, os países europeus enfrentam o dilema relativamente ao que fazer com os seus nacionais que ali se encontram. O debate sobre a responsabilidade dos Estados foca-se, por um lado, no dever de proteger os seus cidadãos e, por outro, na obrigação de garantir a segurança nacional. No frágil equilíbrio deste debate pesam duas questões: a humanitária e a securitária.

Cerca de 5000 crianças estrangeiras vivem nos campos de deslocados lotados. Muitas nasceram na Síria e só conhecem morte e destruição. Se, enquanto sociedade, aceitamos a ideia de que não deve pender sobre as crianças qualquer crime cometido pelos progenitores, então não devemos condenar estas crianças a pagar pelos terríveis erros dos seus pais. Enquanto vítimas, aquelas devem ter os seus direitos protegidos e ser retiradas de situações desumanas que, em caso de sobrevivência, por si só podem potenciar futuros comportamentos problemáticos. Os Estados europeus podem ser o garante desta protecção. Agindo em conjunto com as organizações no terreno, podem tentar repatriar estas crianças e, quando possível, entregá-las às respectivas famílias. Em conjunto com estas, devem promover a sua recuperação física, psicológica e emocional e a sua integração social. Mais, devemos ter em atenção que as crianças mais velhas, tendo sido expostas a um nível de brutalidade anormal, podem mostrar alguma insensibilidade e propensão para a violência, pelo que poderão exigir um acompanhamento mais intensivo da parte das instituições, a fim de identificar estratégias adequadas à sua inclusão socioeducativa e incutir-lhes valores humanistas. Os pais falharam-lhes; os Estados europeus não o devem fazer.

A questão das mulheres deve ser tratada numa perspectiva securitária. A mobilização daquelas começou em 2013, tendo o fluxo aumentado a partir do Outono de 2014, após a proclamação do califado a 29 de Junho. Muitas ocidentais explicaram a sua decisão com razões semelhantes às dos homens: motivadas pela percepção de que a comunidade muçulmana é vítima de perseguição e opressão, responderam aos apelos à emigração para um território onde poderiam viver uma vida islâmica e participar na construção de uma nova nação e identidade comum. Outras decidiram acompanhar familiares que participavam na luta.

Estas mulheres provêm de vários estratos sociais e profissionais: algumas são muito jovens, outras são casadas e mães que, em alguns casos, decidiram abandonar o lar e viajar com os filhos; algumas são estudantes ou têm cursos superiores, outras têm o ensino básico; algumas vêm de famílias normais, outras de meios disfuncionais. Desafiando todas as expectativas racionais sobre o seu comportamento, estas mulheres decidiram abandonar a Europa onde se proclama a igualdade e a liberdade de escolha em prol de uma vida onde, aparentemente, abdicam da sua capacidade de tomar decisões e são obrigadas ao cumprimento de normas rígidas. Combinando motivações pessoais e políticas, tentando superar restrições que pendem sobre si ou encontrar um propósito, todas se deixaram seduzir pelo projecto do EI. Naquele foram donas de casa, esposas, mães, polícias da moralidade, propagandistas e recrutadoras. Algumas foram médicas e professoras. Alegadamente, estiveram excluídas da luta, mas muitas foram treinadas para manusear armas. Seja como for, dedicaram-se ao grupo e trabalharam para o seu funcionamento.

Hoje, estas mulheres dizem-se vítimas: de maridos que as obrigaram a viajar ou as iludiram com umas supostas férias; de recrutadores online que lhes prometeram uma existência dourada no Califado; de pais que decidiram ir para um local onde pudessem viver de acordo com a sharia. É fácil cair na tentação de explicar estas deslocações através de uma perpetuação dos papéis de género socialmente construídos. Estes representam as mulheres como passivas e sujeitas a noções romantizadas de luta, o que as torna alvos fáceis de maridos manipuladores e de imagens de combatentes viris. Deste modo, é-lhes negada agência nas suas tomadas de decisão. Porém, seja qual for a razão que as levou ao califado, poucas podem negar que conheciam a natureza do grupo que o proclamou. Não na época da Internet e das redes sociais que elas tão sabiamente souberam utilizar! Ao aderirem a um grupo terrorista, estas mulheres tornaram-se coniventes com os actos hediondos cometidos por aquele: matanças indiscriminadas através de métodos bárbaros, escravização e violação de mulheres e crianças, promoção de atentados em todo o mundo…

Quando os Estados europeus analisam o regresso dos seus cidadãos daquele palco não podem discriminar entre os géneros, até porque negar agência a mulheres que fizeram escolhas moralmente duvidosas equivale a negar a igualdade sexual. As mulheres podem representar uma ameaça tão séria à segurança nacional quanto os homens e o risco que colocam não se restringe a um possível envolvimento em formas activistas violentas, mas é mais abrangente. Apesar de muitas se mostrarem desapontadas com a vida no califado, tal não significa que renunciaram a ideias com as quais conviveram tantos anos. Na sua condição de viúvas ou mães de mártires do conflito sírio, aquelas podem gozar de um estatuto especial e vir a desempenhar um papel proeminente nos milieus jihadistas europeus. Algumas manterão ligações a uma rede jihadista internacional. Viúva de um jihadista, Malika El-Aroud foi, durante anos, responsável por uma rede de envio de voluntários da Bélgica para o Afeganistão.

Assim, nenhum Estado europeu pode aceitar receber estas mulheres sem analisar exaustivamente as razões que as conduziram à Síria e o seu percurso até ali (nomeadamente com quem foram casadas), a fim de aferir as consequências para a segurança e coesão social, as opções para lidar judicialmente com aquelas ou as estratégias para promover a sua reintegração na sociedade.

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