Morreu Scott Walker, um músico tão misterioso quanto influente
De David Bowie e Nick Cave a Jarvis Cocker, passando por Neil Hannon, Thom Yorke ou Alex Turner, a influência do autor, produtor e cantor de voz de barítono é sentida na música popular. Walker tinha 76 anos.
O músico Scott Walker morreu aos 76 anos, anunciou a sua editora 4AD. Fez um percurso que partiu do centro da indústria musical e do epicentro da cultura juvenil anglófona da década de 1960, que irradiava do Reino Unido, com cantores de cabelos longos e fãs estridentes, para a periferia experimental e influente da criação musical. “Pode haver uma grande pureza na música pop”, disse em 2012. Se na música com que se ocupou desde então há um negrume, há também “um anseio”, disse ao Guardian. “Pela própria existência. Pela verdadeira existência.”
“É com grande tristeza que anunciamos a morte de Scott Walker”, escreve a etiqueta indie que representa alguns dos mais importantes nomes da música alternativa dos anos 1980 e 90 e que editava o trabalho de Walker desde 2004. “Durante meio século, o génio do homem nascido sob o nome Noel Scott Engel enriqueceu as vidas de milhares, primeiro como um terço dos The Walker Brothers e depois como artista a solo, produtor e compositor de uma originalidade inflexível.” A data precisa da sua morte, bem como as suas causas, não foram ainda reveladas.
Scott Walker, nascido em 1943 em Hamilton, no estado norte-americano de Ohio, é um dos rostos e também – como titula a BBC na manhã desta segunda-feira – um dos enigmas do rock das últimas décadas. “Quem é que sabe alguma coisa sobre Scott Walker?”, perguntava retoricamente David Bowie num documentário sobre o músico. O seu legado é tanto de autor como de influenciador: afastou-se rapidamente da fama, apesar de ter começado como um ídolo juvenil com voz de barítono, mas, como sublinha a editora independente, “o estilo de vida das superestrelas não era para Scott”. Mas as estrelas da música alternativa, de Thom Yorke, dos Radiohead, a Jarvis Cocker, dos, Pulp, de Nick Cave a Neil Hannon, dos The Divine Comedy, estão entre os que mais o elogiam e se dizem marcados pelo seu trabalho e atitude perante a música e a indústria.
“[Ele foi]”, disse esta segunda-feira o vocalista dos Radiohead, citado pelo diário britânico The Guardian, “uma enorme influência nos Radiohead e em mim, mostrando-me como podia usar a minha voz e as minhas palavras.” O produtor Nigel Godrich, colaborador de anos dos Radiohead, lembra-o esta segunda-feira como “um dos grandes... tão único e um verdadeiro artista”. Em 2012, numa rara entrevista ao Guardian, Walker dizia que da música actual ouvia Radiohead ou Animal Collective. Jarvis Cocker, que como o PÚBLICO escrevia em 2001 chegou a ser apelidado de “Scott Walker dos anos 80”, acabaria mesmo por colaborar com ele no álbum dos Pulp We Love Life. Tornaram-se amigos.
Outras colaborações de Walker no século XXI: com o metal dos Sunn O))) em Soused (2014), por exemplo, ou na pop etérea Bat for Lashes em The Big Sleep (2009). O projecto The Last Shadow Puppets, de Alex Turner, dos Arctic Monkeys, tem por base o trabalho de Scott Walker e o seu lastro pode ser identificado ainda nos Tindersticks ou nos Magnetic Fields.
Walker despontou no mundo musical nos anos 1960, primeiro como músico de sessão e depois colaborando com o guitarrista e cantor americano John Maus – Maus, cujo trabalho a solo foi este ano devolvido ao centro da cultura pop na banda sonora da série Russian Doll (Netflix), usava o pseudónimo John Walker como nome artístico, mas também como identificação falsa para poder actuar enquanto menor de idade. Com ele, e mais tarde com o baterista Gary Leeds, formavam os The Walker Brothers, não sem antes terem apoiado Judy Maus, a irmã de John, no grupo Judy and the Gents.
Os The Walker Brothers, autores de Make it easy on yourself ou The sun ain’t gonna shine anymore, teriam enorme sucesso no Reino Unido. Ele era o principal compositor do grupo, que também fazia muitas covers e que era seguido por milhares de fãs estridentes. A pressão tinha os seus efeitos sobre o músico; uma namorada apresentá-lo-ia à música de Jacques Brel, e o futuro influenciador era influenciado pelo autor belga de forma indelével, fazendo versões do seu trabalho (Amsterdam, Mathilde, Jackie ou Next foram algumas das que gravou entre 1967 e 1969, e todas surgiriam compiladas em Scott Walker Sings Jacques Brel, editado em 1981).
Em 1967 lança o primeiro dos seus álbuns a solo, Scott, a que se seguiriam Scott 2, Scott 3 e Scott 4 (1969), à medida que se afastava do centro mais visível e mediático do meio musical. Ainda que Scott 2 tenha sido um êxito de vendas, esse apelo comercial ia-se desvanecendo e o trabalho do músico, guitarrista e vocalista movia-se para territórios mais experimentais. É aí que a sua abordagem se torna fonte de tal influência que “atordoou os públicos com música cuja composição transcende géneros e cuja pura originalidade desafia classificações”, como analisa a sua editora. Uma pop orquestral, temperada com temas humanistas e existenciais sobre a vida, a morte, o amor, cuja abordagem poética e temática estava nos antípodas do que o seu primeiro e fervoroso público adolescente esperava dele.
Do ídolo pop não se esperava que se cantasse sobre a invasão soviética de Praga (The old man’s back again (Dedicated do the neo-stalinist regime), de Scott 4), que abrisse um álbum, o mesmo Scott 4, com Seventh seal, inspirada no filme de Ingmar Bergman, que fizesse habitar as suas canções de existências marginais à normalidade burguesa, utilizando prostitutas como protagonistas, mergulhando no bas-fond de tabernas e bordéis onde abundavam drogas e comportamentos desviantes ou abrindo brechas na composta fachada do conservadorismo social. Foram canções como essas (Plastic palace people, Next, The girls from the street, Jackie) a garantir-lhe o apreço futuro de nomes como David Bowie ou Jarvis Cocker, foi por elas que ganhou um lendário estatuto de culto na história da pop.
Porém, foram também aquelas canções, e a forma como, em som e nas letras, Scott Walker espelhou de forma tão evocativa as pulsões escondidas e o lado negro da existência humana, que o transformaram num autor incompreendido por aqueles que antes o idolatravam. Se os três primeiros álbuns a solo ainda beneficiaram do efeito Walker Brothers (Scott 1 e Scott 3 em terceiro lugar nas tabelas britânicas, Scott 2 no topo), o seu quarto álbum a solo, Scott 4, o primeiro inteiramente composto de canções assinadas por si, desapareceu comercialmente sem deixar rasto.
Walker continuou a trabalhar arduamente nos anos 1970 – foi no primeiro ano dessa década que se naturalizou como cidadão britânico – e até incluiu na década um regresso aos The Walker Brothers entre cinco discos a solo em que explorava, entre outras linguagens, o psicadelismo; ainda a solo lançaria Climate of Hunter (1984) para geografias mais electrónicas, antes de um hiato de uma década, para em plenos anos 1990 voltar a editar música de forte teor social e risco criativo (na sua carreira escreveu sobre o massacre de Srebrenica, sobre o 11 de Setembro, os filmes de Ingmar Bergman ou usou carne animal como base de percussão), como a que constava do seu álbum Tilt (1995). Nesta fase, a sua transformação, tendo em conta os tempos radicais dos primeiros álbuns a solo, tornava-se ainda mais radical e a sua música deixava de ter centro definido, com as canções a transformarem-se em peças de exploração tão musical quanto psicológica, diríamos, criações que a sua voz sobrevoava como espectro inquietante. Assim continuaria, com uma originalidade perturbadora, mas desarmante, nas edições seguintes.
Em 2006 editou The Drift, o seu primeiro álbum em 11 anos. Um ano depois, Walker voltava à carga com uma edição não só limitada, mas que nunca mais poderia ser reeditada intitulada And Who Shall Go to the Ball? And What Shall Go to the Ball? e em 2012 lançava Bish Bosch. Nos últimos anos assinou ainda duas bandas sonoras, de The Childhood of a Leader (2015) Vox Lux (2018) – compor para o cinema começou em 1999 com a banda sonora de Pola X, de Léos Carax.
Ao mesmo tempo que viveu afastado do circuito mediático e dos grandes eventos de massas da música, assinou um total de 18 álbuns em nome próprio, dos trabalhos a solo às bandas sonoras. “Um amigo meu diz que não sou um eremita, sou só discreto. Geralmente, se não tenho nada para dizer, é inútil aparecer”, disse em tempos à BBC sobre a sua década de pousio entre os anos 1980 e 90. Era também avesso aos concertos, mais ocupado e exigente com a criação musical.
“De ídolo adolescente a ícone cultural, deixa um legado de música extraordinária para as gerações futuras; letrista brilhante com uma voz comovente, foi um dos mais reverenciados inovadores na ponta da lança da música criativa, cuja influência sobre muitos artistas foi amplamente reconhecida”, continua a 4AD, referindo-se indirectamente a gigantes como David Bowie. O documentário Scott Walker: 30th Century Man foi produzido precisamente por Bowie, que em 1993 fez uma versão de Nite Flights, de Walker.
Com Mário Lopes