Há um festival de crimes em Oslo: alguma excitação para quem vive numa sociedade segura e de bem-estar
O Krim Festivalen é o maior encontro de autores de romances policiais que acontece na Escandinávia. O PÚBLICO acompanhou o evento e falou com dois dos mais destacados autores noruegueses: Jørn Lier Horst, já com três livros traduzidos em português, e Gard Sveen.
A circulação de carros foi vedada durante três dias na rua Akersgata, no centro de Oslo, na Noruega. Depois de se contornar uma esquina – as montras de ambos os lados enchem-se de romances policiais –, o transeunte depara-se, a meio da rua, com uma pequena tenda vermelha ladeada por dois bonecos, tamanho natural, vestidos de fato-macaco branco. Em redor, fitas de plástico, amarelas e brancas, onde se lê “Police”, isolam a suposta cena de um crime. É o chamariz para o Krim Festivalen – o maior encontro de autores de romances policiais que acontece na Escandinávia.
Este festival aconteceu entre os dias 21 e 23 de Março em dois lugares diferentes na capital norueguesa, um de cada lado da rua: numa livraria pertença de uma editora, a Cappelen Damm, e num teatro. Neles vários autores escandinavos e alguns anglófonos – onde este ano se destacaram o norte-americano Robert Dugoni e a inglesa C J Tudor – debatem vários assuntos em volta do romance policial, mas sobretudo contam histórias das suas experiências de escrita. Foi assim, por exemplo, que a escritora islandesa Yrsa Sigurdardóttir (em Portugal, os seus livros são publicados pela Quetzal) falou dos problemas em arranjar nomes para as suas personagens, pois dada a reduzida população da Islândia, seria muito provável que alguém se sentisse ofendido por ver o seu nome dado a um assassino; assim ela recorre sempre aos nomes de amigos.
A grande apetência dos nórdicos por romances policiais, e a sua qualidade, é muito conhecida. O PÚBLICO falou com dois dos mais destacados autores noruegueses: Jørn Lier Horst – tem três livros traduzidos em português – e com Gard Sveen (ainda por cá inédito), o único autor que recebeu os três grandes prémios escandinavos por um romance de estreia. Ambos são da opinião que o que leva os nórdicos ao consumo de policiais é a procura de alguma excitação para quem vive numa sociedade segura e com bem-estar.
Para Lier Horst, que foi polícia e investigador durante 20 anos, é essa segurança e a vontade de viver outras vidas diferentes o que motiva os leitores. “É divertido sentarmo-nos num lugar seguro, em casa, e lermos alguma coisa que nos excite a imaginação, os crimes fazem isso. Gostamos de fazer coisas como as crianças que entram num carrossel em andamento, excita-nos. Como andar na montanha russa. O crime sempre me atraiu. Porque é que algumas pessoas decidem cometer um crime? Fui polícia e investigador, mas esta pergunta é também a que faço nos meus romances. E é também a que muitos leitores fazem.”
O que fascina o autor norueguês é também a questão de como é que “boas pessoas” podem cometer actos censuráveis. E diz: “Quando comecei a minha carreira na polícia, ainda pensava que havia pessoas boas e pessoas más, mas isso não é um facto. Somos tudo. Não há pessoas boas nem pessoas más. O interessante, para mim, passou a ser perceber como é que o mal nos pode chegar, e é isso que procuro mostrar aos meus leitores.”
Um crime real
Lier Horst, que é autor de meia centena de livros (entre os quais vários livros infantis e outros académicos para investigadores), deixou a polícia em 2014, depois de um seu livro ter ganhado o maior prémio escandinavo para romances policiais, o The Glass Key. O seu primeiro romance foi baseado num crime real, um assassinato que ainda hoje continua por resolver.
Foi no primeiro dia de trabalho como polícia, acabado de sair da Academia de Polícia, que o agente foi chamado ao local do crime do assassinato de um idoso. “O meu papel era ficar na rua e levantar as barreiras em volta da cena do crime. Dez anos depois escrevi o meu primeiro livro baseado nesse caso”, conta. “Muito do meu trabalho passa-se dentro dessas barreiras erguidas pela polícia, e é aí que gosto de levar os meus leitores, a lugares onde não muita gente é autorizada a entrar.”
Lier Horst acrescenta ainda que no seu trabalho se encontrou muitas vezes com vítimas de crimes, com pessoas que são deixadas para trás nas investigações. “Era minha função interrogar as pessoas que cometeram os crimes, estar cara a cara com elas, sentir-lhes os remorsos, ou a falta deles. Isso eu também tento passar nas minhas histórias, por vezes fazer desses sentimentos quase o centro da narrativa.”
Este autor norueguês publicou 14 livros da série do inspector Wisting, e já no próximo mês irá estrear uma série de televisão. Lier Horst revelou que os direitos da série já estão vendidos também para Portugal.
O assassínio de Olof Palme
Este fascínio dos nórdicos pelo policial não é, no entanto, uma coisa recente. Começou nos anos 1970, com a dupla sueca Per Wahlöö e Maj Sjöwall, marido e mulher, que criaram a figura do primeiro inspector sueco, ainda muito dentro do cânone noir norte-americano. Mas foi só a partir do final da década de 1980 que o policial escrito por nórdicos se alterou, e houve uma forte razão para isso: a sociedade escandinava (sobretudo a sueca) não se refez do trauma do assassinato do primeiro-ministro Olof Palme numa rua do centro de Estocolmo, em 1986.
Os autores nórdicos quase deixaram de estar interessados em resolver o puzzle constituído pelos factos mais ou menos óbvios de um crime (por vezes, havia mesmo uma ambiguidade final, o que lhes dava uma singular delicadeza), ou na arquitectura de uma experiência sanguinolenta, e passaram antes a centrar-se nas causas e nos efeitos de um acto violento no tecido social. E é por essa altura, na década de 1990 e na seguinte, que surge ainda a ideia de um Estado que se supunha modelar, mas que, afinal, parece controlado por poderosas e ocultas forças malévolas; é nela que acaba por radicar a trilogia Millennium, de Stieg Larsson.
O “crime nórdico” passou assim a ter quase sempre uma inscrição no campo social e, durante anos, raros foram os casos de histórias em que o acto violento é gratuito, passional ou familiar, ou entre sócios desavindos. Passou a haver, quase sempre, a presença extra de uma qualquer força dificilmente controlável, quer seja política, económica, social ou mesmo religiosa. E, como consequência, as personagens principais deixaram de ser obrigatoriamente os habituais polícias ou detectives privados, e passaram a ser também os advogados intuitivos, escritores, jornalistas de investigação ou hackers.
No entanto, nos últimos anos, e com a publicação dos livros de Lars Kepler, os policiais nórdicos começaram de novo a derivar para os antigos arquétipos: a feroz e insana violência, regada a sangue, o investigador que é polícia (apesar de não ser mais um alcoólico solitário de meia-idade). O motivo do livro passa a ser a resolução óbvia do puzzle de uns quantos crimes, e a única preocupação de cariz social ou cultural quase se pode resumir à tendência nórdica para um aprofundamento lúcido dos problemas do indivíduo – a solidão, vícios como o alcoolismo, ou tão-só a procura de um qualquer sentido para a vida –, associada a um estilo feito de frases incisivas, secas e curtas. Ou seja, uma escrita transparente raramente isenta de ironia e que se inscreve numa tradição de narrativa urbana em que a natureza está sempre presente.
Os policiais nórdicos acabam (como de resto também os outros romances escandinavos “mais literários”) por abordar a sensação de mal-estar escondida por trás daquela imagem de perfeição e de aparente normalidade.
Outro autor norueguês, Gard Sveen, concorda que os primeiros autores escandinavos de livros policiais tinham uma grande consciência social naquilo que escreviam. E demarca-se um pouco dos actuais autores de policiais, ao dizer que os seus livros partem de casos reais, mas de “grande política, casos históricos – é esse o meu caminho.”
“Um dos meus romances, por exemplo, tem a Segunda Guerra Mundial como cenário. Num outro, The Bear [título em inglês], parto da história verídica de um espião norueguês [Arvid Storholt], nos anos 1980 [foi condenado a prisão em 1987], que trabalhava para os soviéticos. Foi tido como um dos dois grandes espiões soviéticos no Ocidente, mas a minha teoria [no romance] é que ele era um espião pouco importante, que servia os grandes espiões, e esses nunca foram apanhados”, explica o autor.
Gard Sveen escreveu quatro livros e trabalhou para o Ministério da Defesa norueguês como conselheiro. “Sei como as coisas acontecem”, diz. “Claro que não posso escrever sobre isso, mas estive nesses meandros, e isso ajuda-me muito na ficção que escrevo. Quando os leitores sabem onde é que trabalhei, isso dá mais credibilidade ao que escrevo.”
Não podendo escrever sobre aquilo em que trabalhou (contratos de compra e venda de armas para a Noruega, entre outros assuntos delicados), como é que consegue transformar isso em ficção? A resposta: “Tenho de ter sempre muito cuidado naquilo que escrevo. E esse cuidado é ainda maior porque parto de histórias reais. Por exemplo, o espião que me inspirou The Bear ainda está vivo – eu matei-o no livro, no Outono de 2016. Tenho sempre de dar tempo, as coisas demoram a desenvolver-se no inconsciente, lá no fundo da cabeça, e quando aparecem e eu as escrevo já chegam tratadas, filtradas da realidade e dos factos verdadeiros.”
Gard Sveen deixou de trabalhar para o Governo há quase três anos, para se poder dedicar à escrita. “Agora tenho de tentar viver dos livros nos próximos vinte anos”, diz entre gargalhadas sonoras.
O PÚBLICO viajou a convite da Embaixada da Noruega em Lisboa e do NORLA.