Se matarem o mensageiro, não matam a mensagem
Um projecto jornalístico com sede em França e ramificações transfronteiriças propõe-se mudar a face do jornalismo de investigação. Laurent Richard fundou as Forbidden Stories para continuar ao trabalho de repórteres assassinados ou em perigo.
Apenas coincidência. No ano em que Daphne Galizia foi assassinada em Malta, Laurent Richard tinha interrompido a actividade como jornalista e estava a estudar nos EUA. Era conhecido em França pela cobertura do caso Luxemburgo Leaks, que em 2014 revelou acordos fiscais secretos que beneficiaram centenas de empresas, e queria ir mais longe na denúncia de casos de corrupção. Candidatou-se à bolsa americana Knight-Wallace, que apoia jornalistas seniores na reflexão e desenvolvimento profissional, com uma proposta muito clara: criar uma rede mundial de jornalistas que a qualquer momento pudesse dar continuidade a investigações de colegas mortos, presos ou perseguidos.
Passou dez meses na Universidade do Michigan a maturar a ideia e quando regressou a França em Outubro de 2017 fez nascer a Forbidden Stories, uma plataforma inorgânica gerida pela associação sem fins lucrativos Freedom Voices Network, com sede em Paris, cujo primeiro trabalho viria a basear-se nas investigações que Daphne Galizia deixara por concluir.
“Muitos jornalistas que a conheciam quiseram continuar o trabalho dela e eu propus que fosse o consórcio Forbidden Stories a concretizar esse objectivo”, recordou Laurent Richard, de 43 anos, em entrevista recente ao P2. “Quando um jornalista desaparece, as vítimas não são apenas ele próprio e a família, há uma segunda vítima, a opinião pública, que fica privada de conhecer a investigação que o jornalista estava a desenvolver e que ajudaria a fortalecer o exercício da cidadania”, acrescentou, em discurso rápido e com ar preocupado.
Ainda assim, a morte de profissionais da comunicação social — assassinados, alvo de fogo cruzado ou de cenários perigosos — costuma passar ao largo das notícias, cumprindo a velha tradição de que quem dá notícias não deve ser notícia. Têm sido raras as excepções.
Recorde-se o homicídio de Jamal Khashoggi, com manchetes por todo o mundo por causa das sórdidas circunstâncias em que ocorreu: alegadamente estrangulado assim que entrou na embaixada da Arábia Saudita em Istambul, a 2 de Outubro do ano passado, o colunista do Washington Post e feroz crítico do governo saudita terá sido depois desmembrado e até agora não se sabe o que aconteceu aos seus restos mortais. A relatora especial das Nações Unidas que investiga o caso já disse ter provas de que a morte foi planeada e executada ao mais alto nível, o que adensa a conclusão dos serviços secretos americanos de que a ordem partiu directamente de Mohammed bin Salman, príncipe regente da Arábia Saudita cujo permanente sorriso em público esconde um perigoso coração de pedra, ou assim o tem retratado a generalidade dos media ocidentais.
Mais além das circunstâncias, a repercussão internacional ficou a dever-se às implicações políticas do caso, ao pôr a descoberto a hipocrisia do regime saudita e a “imoralidade da aliança” que os EUA mantêm com Riade, assinalou a revista Time ao escolher Khashoggi como uma das personalidades do ano de 2018.
Daphne, a inspiração
Só na Europa, foram mortos 24 profissionais dos media entre Maio de 2014 e Julho de 2018, contabilizou a Index of Censorship. O levantamento desta organização sem fins lucrativos inclui ainda situações de difamação na Internet, assédio sexual, agressões físicas e psicológicas, despedimentos injustificados, intimidação por via de processos judiciais.
Um dos casos a que a Index of Censorship deu destaque foi o do homicídio de Jàn Kuçiak (juntamente com a companheira, Martina Kušnírová), a 21 de Fevereiro do ano passado, a 50 quilómetros de Brastislava, o único jornalista assassinado na Europa em 2018. Tinha 27 anos e investigava fraude fiscal entre membros do partido do poder na Eslováquia. Outro caso, foi o de Daphne Caruana Galizia, fonte de inspiração para o primeiro projecto das Forbidden Stories.
Assassinada na tarde de 16 de Outubro de 2017, quando o Peugeot 108 em que seguia explodiu perto da aldeia de Bidnija — uma bomba debaixo do carro, no lugar do condutor, accionada à distância —, a jornalista maltesa tinha 53 anos, trabalhava como freelance e tinha três décadas de ofício. Casada, três filhos maiores de idade, mantinha um blogue em inglês, Running Commentary, onde escrevia sobre economia, corrupção, crime, política e direitos humanos. Atraía mais leitores do que todos os jornais do país juntos e chegou a ter 400 mil visitas num só dia.
Dona de uma escrita interventiva e directa, por vezes agressiva, era considerada a mais importante jornalista de investigação do arquipélago de Malta — colónia britânica até 1964 e estado-membro da União Europeia desde 2004, com 450 mil habitantes. Integrava o Consórcio Internacional de Jornalistas de Investigação (ICIJ), de Washington, o mesmo que tratou milhões de documentos digitais confidenciais com origem no escritório de advogados Mossack Fonseca e obtidos a partir de fonte anónima. Eram os “Panama Papers”, gigantesca fuga de informação que a partir de 2016 permitiu conhecer operações de fuga aos impostos e lavagem de dinheiro em paraísos fiscais.
O governo maltês foi amplamente noticiado e comentado pela repórter e uma das investigações visaram de tal forma o primeiro-ministro Joseph Muscat, de centro-esquerda, que o obrigaram a convocar eleições antecipadas em 2017, sob pressão da União Europeia. Estava alegadamente envolvido no circuito dos “Panama Papers” e manteria com a mulher uma empresa offshore a que tinha ido parar um milhão de dólares de Leyla Aliyeva, filha do presidente do Azerbaijão, noticiou a jornalista. Já o líder do partido da oposição, Adrian Delia, estaria envolvido em lavagem de dinheiro e terá depositado em paraísos fiscais altas somas oriundas de negócios de prostituição.
Jornalismo para defender o jornalismo
O caso do homicídio de Daphne Caruana Galizia continua a ser julgado em Malta, sem que o mandante esteja identificado, o que tem provocado manifestações de cidadãos e críticas do Parlamento Europeu.
Em Abril do ano passado, seis meses depois do homicídio, as Forbidden Stories, de Laurent Richard, deram a conhecer o Daphne Project através de reportagens publicadas em jornais, agências de notícias e televisões de todo o mundo: The Guardian, Le Monde, La Repubblica, Times of Malta, The New York Times, Reuters, Die Zeit, muitos outros. Em Outubro, uma segunda leva de trabalhos saiu a público: 45 jornalistas de 15 países tinham trabalhado em segredo para completarem as investigações da jornalista e para investigarem as circunstâncias da sua morte.
“Depois de ela ter sido assassinada telefonei a Matthew, um dos três filhos de Daphne”, lembrou Laurent Richard. “Já o conhecia, porque ele vivia em Paris e fazia parte da ICIJ. Expliquei-lhe o que tinha em mente e a importância de continuar o trabalho da mãe dele. Matthew concordou a 100% e ajudou-nos a perceber que histórias estavam incompletas. Escolhemos cinco ou seis temas principais, como a venda ilegal de passaportes ou acordos sobre energia, todos relacionados com corrupção, lavagem de dinheiro e fuga fiscal. Eram históricas importantes para os malteses e para o público de outros países, porque quando se trata de crimes económicos o fluxo de capitais atravessa fronteiras.”
No final de Janeiro, em Berlim, Laurent Richard apresentou as Forbidden Stories na conferência europeia Uncovered, sobre jornalismo de investigação, e disse que pretende “utilizar o jornalismo para defender o jornalismo”. “Não somos um grupo de pressão, não fazemos activismo, somos apenas jornalistas”, sublinhou perante uma plateia de dezenas de profissionais da comunicação social. Em cima de um palco, declarou que “quase todos os jornalistas assassinados na última década, em qualquer parte do mundo, trabalhavam temas quentes ou estavam prestes a publicar revelações comprometedores ou incómodas”. Mais tarde, explicou ao P2 como funciona a estrutura, mas não quis entrar em pormenores, provavelmente para proteger quem nela trabalha.
De fato e sem gravata, falou com a gravidade que atribui ao tema. Em termos hierárquicos, é fundador e director da Forbidden Stories. Jules Giraudat é o coordenador internacional. No escritório parisiense trabalham seis pessoas. “O que demora mais tempo, mas é fundamental, é a coordenação desta rede, porque há 45 jornalistas de 18 organizações e temos de planear tudo muito bem, para que seja possível remarmos todos na mesma direcção”, disse. A forma como os profissionais são escolhidos para participar ficou por explicar.
“Basicamente, trabalhamos com jornalistas muito habituados a colaborar uns com os outros, repórteres extraordinários. Todos sabem que as novidades devem ser partilhadas com todos os outros que estão na mesma investigação. O jornalismo colaborativo pode ter alguns espinhos, é preciso que todos aceitem regras comuns, mas é um benefício enorme para nós e para a opinião pública, porque os trabalhos que daí resultam são mais rigorosos, os factos estão todos devidamente verificados e o impacto é enorme”, sustentou Laurent Richard. “Quando há dezenas de profissionais a investigar o mesmo assunto e a trabalhar em conjunto, conseguimos ter acesso a mais fontes de informação.”
Dois modelos serviram de inspiração. Em termos de funcionamento, o consórcio ICIJ, dos Panama Papers; em termos simbólicos, uma iniciativa americana de 1976, em que os colegas do jornalista assassinado Don Bolles se juntaram para dar continuidade à investigação que o tinha conduzido à morte. O figurino não é inteiramente novo. Já em 2015, na Azerbaijão, a detenção da jornalista Khadija Ismayilova levou a que outros repórteres começassem a trabalhar nos temas que ela deixara incompletos.
Assuntos sensíveis
O que parece ser novo, sim, é a colaboração transfronteiriça e o apelo que as Forbidden Stories lançam no site a jornalistas de todo o mundo: “Se és jornalista e cobres assuntos sensíveis ou sentes que corres perigo, envia-nos mensagens ou documentos de três maneiras possíveis: Signal, SecureDrop e e-mail encriptado”, ou seja, uma aplicação de conversação no telemóvel, um servidor informático e um serviço de correio electrónico, todos com mecanismos de protecção do conteúdo. Pedem ainda aos jornalistas interessados para remeterem instruções sobre quando e como querem que certa investigação seja continuada, caso estejam repentinamente impedidos. Uma espécie de “testamento vital” para jornalistas.
Presente na conferência de Berlim, Pavla Holcova notou que “já não são apenas equipas locais a trabalhar nestes projectos conjuntos, não são os colegas de redacção de um jornalista morto ou os amigos próximos, o âmbito alargou-se a consórcios globais”. A Internet trouxe novas ferramentas que facilitam a criação de histórias mundiais e permitem aos jornalistas partilhar informação de forma rápida e eficaz. “É a globalização no jornalismo”, referiu ao P2.
Ainda assim, para esta autora de reportagens sobre corrupção na República Checa e na Sérvia, o jornalismo “está a viver um Inverno na Europa” — e a pressão que sobre ela exerceram as autoridades checas, por causa da investigação que fez à morte de Jàn Kuçiak, talvez justifique o pessimismo. “Muitos políticos gostam de desvalorizar o nosso trabalho, mas depois perseguem-nos e com isso reconhecem o poder e a relevância do jornalismo. É por isso que os jornalistas devem estar cada vez mais em contacto uns com os outros e partilhar conhecimento, incluindo o conteúdo das investigações que ainda estão a realizar.”
Opinião idêntica foi transmitida por Tom Gibson, representante na União Europeia do Comité para a Protecção dos Jornalistas (CPJ). Numa breve troca de palavras com o P2, recordou que “muitos jornalistas trabalham de forma isolada e enfrentam sozinhos ameaças à integridade física ou processos judiciais”. É por isso devem ser retirados “desse isolamento, que muitas vezes leva à autocensura e a situações dramáticas”. Num âmbito mais geral, sublinhou os “frequentes ataques à liberdade de imprensa por parte de líderes europeus, desde logo o presidente Viktor Orbán, da Hungria, que chamou prostitutos aos jornalistas, ou Miloš Zeman, presidente da República Checa, que tem feito ameaças a jornalistas. É um comportamento intolerável que tem de ser desafiado”, disse. “Os estados membros da União Europeia costumam ser muito brandos na crítica uns aos outros quando está em causa a liberdade de imprensa, dizem que é um assunto interno de cada estado. Parece-me importante dizer que a liberdade de imprensa pertence a todos os cidadãos da União Europeia, não é um assunto interno, é um assunto comum. Os tratados da União Europeia dizem-nos que os valores europeus são comuns.”
O argumento de que a opinião pública está cansada de escândalos de primeira página e de aberturas de telejornal com casos de corrupção foi focado por alguns participantes da conferência Uncovered, mas Laurent Richard discordou. Admitiu que há “muitos cidadãos que hoje não confiam nos jornalistas”, o que poderia mudar se “os jornais e as televisões investissem mais no jornalismo de investigação”. “É uma boa estratégia para criar empatia, para mostrar que realmente trabalhamos para o público”, disse, contrastando de seguida. “Quando um jornal publica grandes investigações o número de assinantes desse jornal tende a subir em flecha nos dias seguintes, como já aconteceu com o New York Times ou o Mediapart, e as audiências televisivas de reportagens de investigação também são bastante elevadas. Por isso, não é rigoroso dizer que as pessoas não se interessam pelas histórias do jornalismo de investigação. O que falta é alguma confiança”, sublinhou.
Questionado sobre o apoio financeiro ao Daphne Project, 29 mil euros de subsídio oriundo da Comissão Europeia (atribuído, por concurso, através do International Press Institute, de Viena, e do European Centre for Press and Media Freedom, de Leipzig), Laurent Richard rejeitou qualquer dúvida. Pode o público ver nisso um potencial conflito de interesses, porque quem faz a sindicância dos poderes está a ser financiado por esses mesmos poderes? “Não vejo como, até porque as reportagens que produzimos mostraram precisamente que a acção da União Europeia tem sido muito limitada na investigação à morte de Daphne. Há uma Muralha da China entre os que financiam e os que investigam”, garantiu.
Neste momento, o Daphne Project está aparentemente parado, mas as investigações prosseguem em silêncio. Bastian Obermayer, que foi quem recebeu os Panama Papers de fonte anónima e desencadeou a investigação internacional, está envolvido, assim como Anne Michel, Juliette Garside, Carlo Bonini e muitos outros. “Vamos continuar, mas não revelamos o que estamos a fazer, por razões de segurança”, disse o fundador das Forbidden Stories.
Entretanto, outro projecto de colaboração teve início, The Deadly Border Project, que permitiu continuar a investigação interrompida do jornalista equatoriano Javier Ortega acerca a cumplicidade entre forças policiais e cartéis de droga. Javier foi assassinado pela Frente Oliver Sinisterra na fronteira com a Colômbia, em Março do ano passado, juntamente com o fotógrafo Paúl Rivas e o motorista Efraín Segarra, os três ao serviço do diário El Comercio. O repórter Jules Giraudat tem assinado alguns dos artigos de continuidade.
Para Laurent Richard, o resumo pode ser este: “A cooperação protege”. “Podemos usar várias estratégias, podemos andar todos de colete de balas, mas o jornalismo colaborativo é que oferece verdadeira protecção, ao transmitir uma mensagem clara aos inimigos da liberdade de imprensa. Se eles perceberem que há 30 ou 40 jornalistas que vão continuar o trabalho de outros, também ficam a saber que é impossível deter o mensageiro.”