Vale tudo por amor? Snu, a dinamarquesa que quis “derreter” Portugal
Quando o Cessna se despenhou em Camarate, a minha mãe estava na maternidade para, inesperadamente, dar à luz não um menino (como o médico sempre lhe disse), mas duas meninas. A tal prova de que a vida nos estraga sempre os planos. E ainda bem.
Era uma vez uma mulher que, tendo a vida totalmente controlada, mas desprovida de amor e gelada até aos limites do coração, um dia viu a vida pregar-lhe uma surpresa. Uma mulher emancipada, independente, também socialmente familiar e com muito sucesso profissional, testemunhou, num ápice, na primeira pessoa, que a “esperteza” (snu, em dinamarquês) não era a única palavra que a definia. Constatou que, afinal, esteve anos a (sobre)viver.
Era uma vez também um homem, cujas crenças éticas e a vontade de mudança lhe corriam nas veias, libertando-o dos preconceitos; em segundos, a vida levou-o a efectivar os seus discursos vanguardistas, proféticos e futuristas, a passar literalmente das palavras aos actos. A esquecer os convénios, supostamente, morais e dos bons costumes, para se entregar, de alma, corpo, cérebro e coração ao amor.
Definir tão nobre sentimento é obra de poetas. Não vou ousar sequer fazê-lo. Prefiro senti-lo, com a convicção que, na maioria das vezes, não é eterno, mas vale, efectivamente (e muito) a pena. Dure umas horas ou uma vida — como o dos meus pais. Amor, mas não para partilhar nas redes sociais (há demasiados estudos e experiências pessoais a demonstrar que o amor é inversamente proporcional à quantidade de publicações que se fazem em conjunto na fogueira das vaidades do século XXI). Amor, sim, para arriscar, mergulhar de cabeça no desconhecido (provavelmente rochoso), numa entrega total e incomensuravelmente maior do que cada um de nós.
A vida é pródiga a estragar-nos os planos, a desarrumar-nos a casa, num inesperado vendaval de sentimentos que jamais ousámos experienciar. O estoicismo, ou a loucura do amor visceral e sem fronteiras, é o melhor do filme que escolhi ver este fim-de-semana. A tal história deste amor, onde valeu tudo. Snu, realizado com a honestidade de alguém que quer fazer diferente (Patrícia Sequeira), mas que não me convenceu (ainda), revela também que, desde aquela noite trágica da morte de Francisco Sá Carneiro — em que, simultaneamente, rebentaram as águas à minha mãe — as mentalidades portuguesas pouco ou nada mudaram. Infelizmente.
Continuamos muito presos às convenções sociais, a (sobre)viver para a selfie familiar, num corpo moribundo presente, mas com o coração a anos-luz. Quarenta anos depois, quando afinal o “E foram felizes para sempre” não existe, continuamos a não libertar o outro quando este já não quer estar connosco, num ciúme doentio de posse (Been there, done that — perfeição não é de todo o meu nome do meio). É assim que queremos mesmo viver?
Políticas à parte, a história do Pedro e da Inês dos tempos modernos portugueses (tinha de acabar em tragédia para a mitificação que lhe abriu as portas da eternidade), que, à época, foi chocante mas inspiradora e, sobretudo, revolucionária, cruza-se indubitavelmente com a minha: quando o Cessna se despenhou em Camarate, a minha mãe estava na maternidade para, inesperadamente, dar à luz não um menino (como o médico sempre lhe disse), mas duas meninas. A tal prova de que a vida nos estraga sempre os planos. E ainda bem.