Na Galiza, come como um galego
O Fórum Gastronómico da Corunha, que este ano decorreu entre 10 e 12 de Março, é pretexto para descobrir restaurantes, chefs, e, sobretudo, ingredientes de uma região que tem cada vez mais bons produtores artesanais, apostados em recuperar sabores e formas de fazer.
Boca Negra
Muitos dos que passaram o dia a visitar stands e a ouvir palestras no Fórum Gastronómico da Corunha, encontram-se à noite num dos espaços mais simpáticos da cidade, o restaurante Boca Negra, onde o chef anfitrião Pablo Pizarro não tem mãos a medir. Saltitando de mesa em mesa, dando dois dedos de conversa em cada uma, vai ao mesmo tempo vigiando os pratos – sobretudo de peixe e marisco – que saem da cozinha.
Pablo é galego mas de origem argentina e, avisam-nos amigos em comum, é um grande conversador. Confirmamos isso mesmo quando, ao final da noite, se senta connosco numa das mesas exteriores do Boca Negra para falar sobre o que se passa com a gastronomia da Corunha.
A região, diz, já criou a imagem de ter um excelente produto, mas é importante que se posicione como um destino gastronómico de qualidade, sim, mas acessível, onde se pode jantar bem por 30, 40 euros – como acontece, aliás, no Boca Negra, que tem um menu de petiscos que tem vindo a evoluir. Dos mais populares do início (que continua a não conseguir tirar da carta), como o crepe de folha de arroz recheada com bochecha de porco e morcela, aos mais sofisticados, que tem vindo a trabalhar ultimamente, como a salada de vieiras com berbigão e puré de cenoura ou a cavala marinada com molho e salpicada de polvo seco. Imagem de marca é já o carrinho de queijos, que o próprio Pablo faz questão de apresentar, com uma oferta que vai dos galegos mais interessantes aos queijos do mundo.
Pablo, que é também fundador do Coruña Cocina, colectivo de cozinheiros que se juntaram para promover a gastronomia regional, sublinha o interesse que têm em fazer acções conjuntas com Portugal – a costa atlântica, algum produto comum, a aposta em espécies mais sustentáveis, como o carapau ou a cavala, são tudo pontos em comum. A estes juntam-se as diferenças entre a costa da Galiza e a de Portugal, as formas de cozinhar e as especificidades culturais, e estão reunidos os ingredientes para um diálogo que pode ser muito interessante.
Nado
Acabado de inaugurar, o Nado, de Iván Domínguez, é o restaurante de que se fala por estes dias na Corunha. Tudo aqui tem a ver com o mar, tudo transpira Atlântico, a começar pelos símbolos usados para a decoração, inspirados nas marcas de reconhecimento utilizadas pelos marinheiros. “As texturas, sabores e cores do oceano que banha a Galiza são a sua razão de ser”, lê-se no texto no site deste restaurante que se assume de “militância atlântica”.
Iván Domínguez começou a sua carreira de cozinheiro nos barcos da Marinha espanhola e passou depois por restaurantes de renome, como a Casa Marcelo, e, mais recentemente, o Alborada. No Fórum Gastronómico apresentou alguns dos pratos que faz no Nado, começando com a lampreia, que preparou ali mesmo, escaldando o animal, sangrando-o, retirando-lhe a tripa e, por fim, servindo-o com um escabeche, sobre uma rodela de batata. “Estamos habituados à lampreia com sangue”, disse, mas a sua opção nesta criação foi mostrar que o sabor do animal pode ser bem mais subtil.
Apresentou também um prato de fabas com amêijoas, explicando que este é um bivalve do qual aprecia o sabor mas não a textura, pelo que aqui os tritura e emulsiona, deixando brilhar as tradicionais fabas galegas, “que são um produto excepcional”. Um terceiro prato que trouxe para a sua apresentação no Fórum foi tripas de bacalhau com grão e um creme de pimentos vermelhos.
No seu restaurante, Iván trabalha os peixes e mariscos da costa atlântica, mas explora também todo o potencial das algas da Galiza e tem vindo a desenvolver experiências para a utilização da água do mar, seja para manter o peixe numa salmoura mas impedindo que ele desidrate, seja para a limpeza dos próprios peixes ou para o aproveitamento em arrozes caldosos.
Pão doce
Há, na Galiza, uma tradição de pães doces que corria o risco de se perder. Felizmente, algumas padarias estão a revitalizá-la e foi esse trabalho que Jorge Guitián, especialista em tradições gastronómicas galegas, quis mostrar numa das sessões do Fórum.
José Luís Minho Seijas, da padaria Pan do Tres, loja histórica fundada em 1955, é um dos rostos dessa revitalização das formas tradicionais de fazer pão e, neste caso concreto, também dos pães doces. Estes surgem, explica, do aproveitamento de restos. “Em casa, as senhoras tinham manteiga cozida que tinha sobrado, é manteiga que se coze para que não crie ranço, separando-se o soro [manteiga clarificada], juntava-se com alguns ovos, não muitos, um pouco de leite, e saíam estes doces.”
Há variações, consoante as terras. Aponta um deles, com açúcar por cima, a chamada Bola do Patrón, feita pelas festas do santo padroeiro, outra é o aproveitamento da massa de pão, com manteiga fresca por cima, que é levada ao forno com um pouco de açúcar e “uns pingos de anis”, ou, numa versão ainda mais calórica, com nata em vez de manteiga.
“Eram doces de comer no dia, porque a massa do pão não pode ficar para o dia seguinte”, explica o padeiro. A falta de tempo fez com que o hábito de fazer estes doces nas casas fosse desaparecendo, mas padarias como a Pan do Tres, a Pan da Moa ou a Panadería Hermanos Diéguez (as três que estiveram presentes no Fórum) garantem que esta tradição não se vai perder.
Queijos
A Galiza é conhecida por alguns queijos tradicionais, como o Tetilla, o San Simon, o Cebreiro ou o Arzúa-Ulloa, mas, diz Jorge Guitián, começam a surgir alguns produtores que arriscam fazer produtos diferentes.
Um dos que foi apresentar o seu trabalho no Fórum foi a queijaria Airas Moniz, de Chantada, Lugo, que apostou nas vacas de raça Jersey (apesar de não serem autóctones, são vacas leiteiras de grande qualidade), criadas em regime extensivo, e já colocou no mercado três queijos excepcionais: o Terra, de sabor intenso e cor amarela, dada pela riqueza do leite, o Cithara, mais suave mas igualmente saboroso, e, ainda, o Savel, um queijo azul, muito intenso mas com enorme untuosidade, garantida, mais uma vez, pela força do leite.
Os queijos Airas Moniz encontram-se em restaurantes e algumas lojas na Galiza, mas quem os quiser conhecer em Portugal tem uma oportunidade em breve: no próximo dia 27, os produtores irão fazer uma prova dos seus três queijos na Queijaria Corriqueijo, em Braga.
Outro projecto muito interessante, e muito recente, de queijos artesanais feitos com leite cru de vaca é o Bisqato, que, com os seus queijos Lia e Xiros, acaba de chegar ao mercado galego.
Flor de Sabugueiro
O projecto Carabuñas propõe-se transformar o sabugueiro num produto gourmet. Muito abundante na Galiza, o sabugueiro oferece não só a pequena baga vermelha, aqui utilizada para fazer um doce, mas também a delicada flor branca, que o Carabuñas apresenta numa geleia que pode ser comida em tostas, com queijos, ou usada em saladas ou até como acompanhamento de carnes mais leves.
“A nossa geleia, feita com uma maceração lenta, extrai todo o aroma e frescura que mantém a flor do sabugueiro fresca”, explicam no folheto. No Fórum, estiveram presentes no “mercado de proximidade”, onde davam a provar a geleia, o doce, o licor de sabugueiro ou a cerveja feita da mesma árvore, que, lembram, também existe em quantidade em algumas zonas de Portugal, mas cujo potencial gastronómico tem sido pouco valorizado.
A Fugas viajou a convite do Fórum Gastronómico da Corunha