Vale do Guadiana: testemunho de uma simbiose ancestral
No Parque Natural do Vale do Guadiana, no Baixo Alentejo, o ser humano e o meio natural vivem em harmonia, numa coexistência que tem sido vantajosa para ambos.
“Simbiose: do grego sumbiósis, associação recíproca de dois ou mais organismos diferentes que lhes permite viver com benefício”. Quando pensamos em parques naturais imaginamos santuários selvagens, florestas virgens, lagoas prístinas, montanhas inacessíveis e animais em puro isolamento. Mas nem sempre é assim. Existem determinados ecossistemas em que a nossa presença beneficia a vida selvagem. É o caso do Parque Natural do Vale do Guadiana, no Baixo Alentejo, onde uma notável simbiose entre ser humano e meio natural tem sido vantajosa para ambos desde tempos imemoriais. Quem o garante é Ana Cristina Cardoso, técnica do parque e bióloga do ICNF (Instituto de Conservação da Natureza e das Florestas): “Aqui a acção humana tem um efeito positivo. É graças à actividade pastorícia que temos esta biodiversidade tão rica” (a quantidade de diferentes espécies que já observáramos naquela manhã — cegonhas-pretas, águia-reais, grifos, abutres-negros, lebres e tritões — parecia confirmá-lo).“É por isso que não antagonizamos ninguém. O nosso objectivo é proteger esta relação antiga e sensibilizar as pessoas que aqui vivem para a importância da preservação das espécies autóctones”, esclarece Ana.
Uma das formas de o fazer é através da Natural.pt, marca promovida pela ADPM (Associação de Defesa do Património de Mértola) em parceria com o ICNF e que agrega produtos e serviços existentes nas áreas protegidas que valorizem os recursos endógenos. Os aderentes incluem tanto alojamentos, restaurantes e empresas de animação turística, como lojas e produtores locais (de mel, queijo, ervas aromáticas, vinho, compotas, óleos essenciais e tapeçaria, por exemplo). O Vale do Guadiana é a área protegida com mais aderentes do país e, com a aposta no projecto Guadiana Natural.pt, a importância do parque tem vindo a consolidar-se.
Abrangendo parte dos concelhos de Mértola e Serpa, o parque nasceu em 1995, pela mobilização da população local e, em particular, pela mão da ADPM, um processo pioneiro na criação de uma área protegida, de baixo para cima, ou seja, promovido pela sociedade civil, com vista à salvaguarda dos recursos naturais e valores endógenos da região, estruturada no desenvolvimento local e assente no património, na cultura e no ambiente. No século XX, aquele território havia sido dilapidado, primeiramente com a extensiva cultura de cereais (o Alentejo enquanto “celeiro de Portugal”), depois pela “invasão” do pinheiro, uma campanha malograda, pois as árvores não crescem naquele solo e não alcançaram o valor comercial esperado. Hoje, o parque trabalha por manter o vínculo entre Natureza e população local, protegendo zonas de montado de azinho, áreas de esteval, matagais mediterrâneos de zimbro e culturas de sequeiro. Comprovamos o sucesso na protecção deste tesouro alentejano enquanto perscrutamos um característico montado, na zona de Mértola, e escutamos a sinfonia da Natureza.
Ana fala apaixonadamente do parque: “É um sítio único em Portugal, mas já se sabe, tendemos a descurar aquilo que está à nossa porta. Vêm aqui pessoas de países do norte da Europa que me dizem: ‘vocês aqui têm tudo, todos estes sons, dos insectos e das aves, já não se ouvem de onde venho”. Cientes de tal privilégio, absorvemos a melodia, por pouco tempo — o rio Guadiana espera-nos.
Este Guadiana não poderia ser mais diferente do Guadiana a montante (sobretudo na albufeira do Alqueva). Em vez de domado e amplo, é bravio e estreito. Tão estreito que corre num profundo e rectilíneo vale encaixado, um canhão de 12 quilómetros de comprimento, chamado de “corredora”. Estamos no moinho dos Canais, perto da aldeia de Corte Pequena, cenário de cortar a respiração, entre altivas escarpas sobrevoadas por grifos e abutres-negros. Esquadrinham a área à procura de carcaças, contudo os tempos são difíceis, como explica Ana Cristina Cardoso: “as regras sanitárias proíbem que gado morto fique à mercê destas aves necrófagas, por isso o alimento escasseia”.
Apesar disso, este é dos melhores locais do país para se observarem estes animais. Mais a norte, a “corredora” do Guadiana brinda-nos com o seu ex-líbris, porventura o local mais conhecido do parque: o Pulo do Lobo. O nome terá origem na pouca distância entre as margens do Guadiana neste local, ao alcance de um “pulo”. Em tempos idos, esta seria a única passagem que permitia o contacto entre espécies das duas margens, entre eles o lobo, daí a designação.
A jóia deste geossítio é a maior queda de água a sul do Tejo, com 14 metros de altura. O Pulo do Lobo pode ser contemplado de uma plataforma na margem direita do Guadiana (no concelho de Mértola) ou de um miradouro do lado oposto (no concelho de Serpa). Deste último obtém-se também um panorama dos dois leitos do rio, formados em épocas geológicas distintas: o leito antigo, ampla plataforma esculpida na pedra por onde corria o velho Guadiana; e, cavado no seu interior, o novo leito, a “corredora”.
O programa do dia contemplava outros pontos de interesse, como o percurso da Bombeira, a praia fluvial da Tapada Grande ou o antigo porto mineiro do Pomarão, mas ao deixarmos o Pulo do Lobo recebemos uma notícia inesperada: dali a uns minutos far-se-á uma “solta” de linces-ibéricos. É certo que o Vale do Guadiana alberga outros mamíferos dignos de nota — veados, gamos, lontras, leirões, texugos, doninhas... —, no entanto nenhum granjeia o estatuto mediático do lince — devido à sua beleza e ao seu estatuto de ameaça criticamente em perigo —, por isso não hesitamos em alterar planos.
A Pimenta e o Picante foram o quinto e o sexto linces-ibéricos a serem libertados em Portugal neste ano, juntando-se ao grupo de aproximadamente 70 exemplares deste felídeo que actualmente existem no nosso país, todos na região do Vale do Guadiana. Trata-se da mais bem-sucedida área de reintrodução na Península Ibérica, com uma taxa de mortalidade inferior à expectável — mais um exemplo de sucesso deste parque.
Terminamos o dia num miradouro em Além-Rio, junto ao Guadiana, onde assistimos a um memorável pôr-do-sol defronte a majestosa fortificação de Mértola e ao som do canto dos peneireiro-das-torres. Também chamadas de francelhos, fazem das estruturas históricas da vila, como o castelo e as muralhas, um refúgio perfeito, sendo a última colónia urbana em Portugal desta rara ave de rapina. Vivem ali imperturbáveis, tirando proveito dos esconderijos nas construções humanas. “Simbiose: associação recíproca de dois ou mais organismos diferentes que lhes permite viver com benefício”. Que melhor forma de terminar este périplo pelo Vale do Guadiana do que testemunhar, uma vez mais, esta extraordinária parceria entre espécies?