Arca: “Do topo dos meus saltos altos enfrento melhor o mundo”
A sua música, arte e identidade não são fáceis de configurar. E no entanto a influência de Arca está por todo o lado, de Björk a Conan Osiris, da pop às vanguardas artísticas. No dia 30 actua no ID Festival do Estoril. Dela espera-se sempre o inesperado.
Conhecer os extremos é talvez a melhor forma de apreendermos os diferentes lados de nós mesmos, dirá a música, produtora, cantora e performer Arca, ou seja Alejandro, quando adopta o nome de nascimento, ou Alejandra Ghersi, 30 anos, quando assume uma condição identitária mutante, entre o masculino e o feminino, entre o humano e o pós-humano, entre o inteligível e o alienígena, entre o belo e grotesco, entre a dor e o prazer, entre andar de ténis ou sapatos de salto alto que desafiam a gravidade.
Nos últimos anos contaminou a música popular de ideias arrojadas. Três álbuns (Xen de 2014, Mutant de 2015 e Arca de 2017) e uma série de colaborações relevantes, com destaque para o papel decisivo nos dois últimos álbuns de Björk e nas suas apresentações ao vivo, mas também com FKA Twigs, Dean Blunt, Kanye West, Frank Ocean ou Kelela. Essa acção transformou-a numa figura essencial, capaz de impor um som singular, qualquer coisa de electrónico e metalizado, de ritmos inesperados e adrenalina sensual, com desenlace feliz no último álbum, cantando num tom entre o angelical e o operático, como se tudo se passasse numa catedral perdida no espaço.
Um som futurista que foi contaminando inúmeras figuras em destaque nos últimos anos, de Sophie a Logic, de Yves Tumor a Serpentwithfeet, de Rosalía a Kelsey Lu, de Gaika ao português Conan Osiris. Se houve alguém que, nos últimos anos, foi capaz de revolver na música pop com sonoridades inclassificáveis foi ela.
Viveu em Caracas, na Venezuela, até aos 17 anos, ouvindo Aaliyah, Aphex Twin ou Björk, tendo tido um projecto de pop electrónica, Nuuro, que obteve algum sucesso no seu país. Depois rumou a Nova Iorque para estudar. Foi aí que voltou à música, antes de se dirigir a Londres, onde conheceu o artista e videasta canadiano Jesse Kanda, que se viria a revelar determinante na criação do seu imaginário, trabalhando ambos a tecnologia de uma nova forma: tangível, sensual, à flor da pele.
O ano passado compôs o longo e magnífico tema Fetiche, selando uma colaboração com o artista visual Carlos Sáez, que teve mais desenvolvimentos na performance-instalação Tormenta. Tal como a sua música ou a identidade fluida, também as suas acções em palco são difíceis de situar. Por vezes aproximam-se do formato DJ. Outras parecem a teatralização, pura, frágil e sincera, de complexos estados emocionais, por entre fluidos amnióticos, sangue falso e lasers, qualquer coisa que nem evoca o lado luminoso, nem o lado sombrio, do existir, mas algo em mutação.
No dia 30 deste mês, depois de o ano passado ter estado no Nos Primavera Sound do Porto, regressa a Portugal para actuar no ID Festival, que se realiza no Centro de Congressos do Estoril, partilhando o cartaz de um evento que acontece entre 29 e 30 de Março, com Madlib, Little Dragon, Pearson Sound, IAMDDB ou Kamaal Williams. No dia seguinte, a 31, falará da sua actividade nas Carpintarias de São Lázaro, em Lisboa, no contexto da BoCA Bienal. Ao longo dos anos não deu muitas entrevistas, diz-nos, mas percebe-se que é conversadora, reflecte falando, recusando a réplica automática.
A maior parte das pessoas sai dos seus espectáculos sem saber se acabou de assistir a um concerto, a uma sessão DJ ou a uma performance artística. Essa ambiguidade, ou essas múltiplas leituras, são algo que procura deliberadamente?
São o tipo de interrogações que me agradam. Dão-me espaço para essa espécie de jogo que é estar em palco. Mas mais importante do que a forma como se partilha é o que se deseja partilhar. Essa troca entre artista e público, esse momento com as pessoas, a confiança que se estabelece, é o mais importante. Todos vão a um espectáculo certamente com expectativas. Mas se estiverem disponíveis para a surpresa é possível que se estabeleça uma relação mais intensa e proveitosa com aquilo a que se assiste. E não é só para elas. Para mim também. Não chamo às minhas performances “sessões DJ”, ou “instalações de arte”, ou “concertos”, porque o que interessa é a relação íntima, que acaba por ser sempre incerta, que se estabelece entre quem está em palco e o experiencia. A espontaneidade é importante. A partir do momento em que o performer, ou o público, vai com expectativas muito definidas, algo se quebrará quase inevitavelmente. Claro que as haverá sempre, até certo ponto, mas essa abertura para o inesperado é essencial. Para além de ser sintoma de vitalidade.
Assisti a duas performances suas muito diferentes em termos formais. Uma mais próxima da ideia da sessão DJ e outra com uma componente cénica mais vincada. De comum o facto de exibirem generosidade e um tipo de exposição no fio da navalha.
Não me forço a fazer as coisas de determinada maneira. Por isso, sim, esse tipo de honestidade – ou de dignidade e integridade – é muito importante. O que não significa que as minhas performances não sejam simulações. Por vezes constituem a recriação de situações difíceis, ou a criação de cenários que podem ser até dolorosos para mim. Forço-me a isso. Quero passar por essas situações. Deixo que a dor e o prazer, o belo e o risível possam coexistir. Mas ao mesmo tempo, quando me lembro porque escolhi estar ali, percebo que aquele momento constitui uma oportunidade maravilhosa de partilhar e de estar conectado com os outros. Às vezes também pode acontecer pensar que nunca mais quero voltar a pisar um palco… [risos]. O truque, a solução, é não desistir. Ir além da paixão do momento. Permitirmo-nos descobrir coisas novas, mesmo quando tudo parece sombrio à volta. Gostava que as pessoas saíssem sempre dos meus espectáculos com a sensação que acabaram de experimentar algo criativo, mas nem sempre isso é possível. Não se pode controlar tudo. Às vezes apetece-me criar uma atmosfera mais física, quase primitiva, e a assistência está estática e é intelectualizada. E às vezes pode ser ao contrário. Nunca se sabe. O importante é estarmos abertos para as mais díspares emoções – prazer, sofrimento, curiosidade, malandrice, perversão, inocência.
Falou em simulação. Ainda existe esse equívoco que é contrapor a ideia de encenação à de autenticidade como se fossem opostos. Como se posiciona entre essas duas visões?
Gosto de contar histórias e de ser receptor delas também. Temos dificuldade em olhar para a vida ou para a realidade assim, mas na verdade é isso que passamos o tempo a fazer uns aos outros: contar histórias. Nada mais do que isso. Desde a antiguidade grega que é assim. Escolhemos um ângulo, reforçamos outros, olhamos para o todo ou apenas para um aspecto em particular. Escolhemos como nos vamos posicionar em determinado acontecimento. No meu caso existem temas, emoções e estados mentais que são dramatizados ou teatralizados, às vezes de uma forma excessiva. Mas se isso acontece dessa forma – como na antiguidade clássica – é porque acredito que dessa maneira posso comunicar de uma forma mais consequente um sentimento ou uma emoção genuína e honesta. Ao mesmo tempo é preciso problematizar, a todo o momento, essas noções. O que significa ser “autêntico”? É uma palavra complicada. Ninguém sabe o que “autêntico” significa para o outro. Apenas podemos ver o mundo com os nossos olhos. Nem sequer sabemos se o outro vê as cores da mesma forma que nós. Por um lado é preciso aceitar isso – as opiniões diversas. Por outro gosto do reconhecimento quando as pessoas concordam comigo.
Nas suas fotos, e vídeos, esse excesso e barroquismo que nomeia, essa ambivalência entre o belo e o grotesco, está quase sempre presente. É uma forma de expressão emocional?
É uma forma de sugestão. Sei que por vezes pode haver más interpretações, porque me situo numa zona com várias fronteiras, mas não me importo. Às vezes dizem-me que algumas imagens são violentas. Não creio. Seria incapaz de celebrar a violência. Agora posso sugeri-la, através de gestos performativos que podem conter também alguma dose de tristeza, de dor ou de amor. Por vezes está tudo ligado. Sei que para a maior parte a representação da tristeza na música envolve sempre algo de desgostoso, mas não para mim. Aceitar em alguns momentos da vida a tristeza é um gesto transformativo. Em vez de lhe fechar a porta, deixá-la entrar, inclui-la. Para mim essa ideia mítica da canção que se interpreta antes da morte, ou que emerge de um lugar onde estamos a sangrar ou em carne viva, é muito bonita. Gosto dessa ideia, não sei bem porquê. E talvez não tenha de compreender.
No seu último álbum canta, pela primeira vez como Arca, e fá-lo em castelhano, o que parece ajustado à sua música, não sei bem porquê. Existe algo no seu imaginário que remete aliás para os filmes de Pedro Almodôvar dos anos 1980. Conhece-os?
Vi Matador (1986) porque algumas pessoas me falaram dele. Fico satisfeito quando me dizem que a língua em que canto lhes faz sentido. Já para mim o simples cantar é ainda algo envolto em paradoxos, embora não tenha nada contra contradições e excepções. Não gosto é de regras e dogmas. É que por um lado olho para a voz como mais um instrumento, semelhante a qualquer outro, não lhe atribuindo uma importância especial nesse sentido. A voz pode ser utilizada das mais diversas formas, como um piano. Mas por outro lado é verdade que tendemos a responder de uma forma emocional à voz e quem a utiliza responde a ela de uma maneira inter-relacional, porque faz parte de si próprio. Nesse sentido é um instrumento mais vulnerável do que qualquer outro. E essa ambivalência faz parte de mim.
Se responder que a voz é mais íntima estou a trair essa parte de mim que é instrumentista. Por outro lado é bonito voltar a cantar. Costumava fazê-lo quando era adolescente e agora regressei a ela. É como se a voz sempre estivesse estado lá, apesar da ausência durante anos. É estranho. É ao mesmo tempo um lugar novo para mim, mas de forma privada é como se estivesse a comunicar com o meu eu juvenil de novo, quando tinha 15 anos. É também simbólico: parei de cantar aos 17 anos quando fui estudar para Nova Iorque e dez anos depois voltei a fazê-lo.
Tem afirmado que Björk foi importante nesse processo de redescoberta da voz, atribuindo-lhe uma confiança que perdera.
Sim, ela foi muito importante. Tenho um enorme respeito por ela como pessoa, como produtora e como cantora. Então, ouvi-la sugerir que talvez devesse voltar a cantar, depois de me ouvir utilizar a voz de forma descontraída, foi importante. Secretamente também o desejava, mas sentia que ainda não era a altura. Ou talvez o que fui fazendo no passado não o contemplasse. Agora sim. No meu último álbum existem várias referências à pele. Na altura não o percebi assim. Mas é como se tivesse entrado num espaço hiper-frágil nessas canções, como se alguém me tivesse retirado a pele. Acho que isso tem a ver com a voz. Utilizar outra vez a voz foi uma forma de crescimento e de maior verdade.
Quando alguém como Björk parte para a feitura de um álbum parece existir sempre uma ideia, um conceito, um motivo, algo que norteia a feitura do mesmo. Como acontece no seu caso?
Faço imensa música. Estou sempre a fazê-la. Nem sempre tenho um objectivo em mente. É mais uma necessidade. Mas no caso de um álbum, acho que é o mesmo que escrever um livro. Começa-se muitas vezes sem uma ideia clara em mente e a partir de determinada altura quer-se criar mais para descobrir o que é aquilo exactamente. A curiosidade é fundamental. Quer-se perceber onde vai dar o que se iniciou. Às vezes isso só fica nítido no final, quando se escolhem os temas que constarão no disco. É aí que se percebe o que atribuiu unidade ao que se criou antes.
Esse processo de edição é muito revelador. Às vezes é também um processo de resposta ao que se fez antes. Posso ter um disco que é influenciado remotamente pelo hip-hop, de forma abstracta, e de seguida desejar fazer algo distinto. Todos os meus discos têm alguns pontos de ligação, mas é importante sentir que não me repito. No fundo o processo de criação contempla a disciplina, a espontaneidade, as emoções e a edição de tudo isso – a tentativa de comunicar algo aos outros de uma forma que faça sentido. Muitas vezes é mais instinto que outra coisa. No caso de Björk é algo muito solitário. No meu caso, vou dando a ouvir o que faço a uma ou outra pessoa – como a ela – mas acabamos por estar entregues a nós próprios. Tento afastar os meus pensamentos das expectativas dos outros. Sei que soa a cliché – mas tento estar apenas em contacto comigo. E depois é esperar que alguém se conecte com o que fizemos. É sempre uma “mensagem numa garrafa” atirada ao oceano. Nunca se sabe o que vai acontecer.
Desde o início que a sua música soou singular e identificável. Poderia ser assim e não ter eco. Mas teve. Essa identidade foi-lhe sendo devolvida ou teve essa consciência desde o princípio?
Acho que sim. Essa é uma questão muito bonita. Concordo consigo. Podemos criar algo de muito singular, mas isso não é garantia de criar vínculo, ligação ou comunicação. Somos criaturas sociais alimentadas pelo desejo de fazer parte de uma comunidade. Temos a capacidade de nos relacionarmos uns com os outros, descobrindo-nos a nós próprios nessa comunidade. Talvez se nos mesclarmos demasiado nessa comunidade possamos correr o risco de nos diluirmos nela e acabar por interrogar onde nos situamos, quem somos, onde está a nossa diferenciação. Nesse sentido existe uma urgência em fazer algo que nos distinga, mesmo que exista um sentimento de pertença idealizado. Por outro lado existe essa contradição que é desejarmos fazer qualquer coisa que os outros percebam. É uma tensão nunca resolvida. E muito bela também. Porque se a percebermos bem constitui a prova irrefutável de que estamos vivos, que não desistimos de nos interrogar, que mantemos a curiosidade pelo mundo. No meu caso, acaba por ser uma combinação entre coisas que sinto que posso ser eu a fazer e também responder e contribuir para linguagens que aprendi e que existiam antes de mim. É uma combinação das duas coisas, entre manter a minha individualidade e desejar ser aceite pelos outros.
Ao longo dos anos foi encetando colaborações (Björk, FKA Twigs, Kelela, Kanye West, Frank Ocean) onde deixou a sua assinatura. Nesses casos como é vivida essa tensão entre não diluir a sua identidade e adaptar-se às expectativas alheias?
Foi mudando com os anos. No início a minha paixão era mais introvertida, por assim dizer. Queria afirmar-me de maneira mais premente, parece-me. Agora olho para as colaborações mais como um espaço em aberto, um parque infantil onde é possível eu e outras pessoas brincarmos com aquilo que mais gostamos de fazer. É importante nessas situações haver um certo relaxamento. Ninguém se sentir com obrigações para com o outro. Para mim é como regressar à infância quando alguém nos convidava para um jogo e havia investimento nele a sério porque nos dava prazer; mas quando alguém desistia a meio também estava tudo bem. Não havia culpa envolvida. Quando me convidam para encetar uma colaboração nunca sei o que esperar. Aquilo que me atrai é a curiosidade. Depende das situações. Às vezes fazer música é uma situação de grande vulnerabilidade e queremos estar envolvidos por pessoas em quem confiamos. Mas também pode acontecer que, a partir de uma situação de grande desconforto, possa nascer musica inesperadamente bela. Não há regras. O ideal é haver espaço para o jogo, a diversão e a espontaneidade, que é importante para transformar a expectativa do outro e chegarmos em conjunto a um novo patamar.
Nasceu e cresceu na Venezuela, como é que olha para a conflituosa situação sociopolítica que se vive nos dias de hoje?
Sinto-me triste. Os meus amigos estão lá. É um assunto delicado para mim porque me traz de volta imensas memórias. A Venezuela é o tipo de país que sempre gerou um grande sentimento de insegurança. Às vezes isso é ampliado pelos meios de comunicação, mas na maior parte das vezes está lá. E parece-me que piorou desde que saí de lá. É estranho.
Quando me perguntam para comentar o momento actual, a tentação é responder que o momento actual se prolonga há três décadas. Não é de agora. A diferença é que agora existe mais cobertura mediática. É-me difícil saber o que pensar ao certo. Por um lado sinto-me reconfortado por perceber que a situação é acompanhada pela comunidade internacional, por outro existe um sentimento de impotência que é acompanhado de revolta pela forma parcelar como os assuntos são abordados. A Venezuela é sempre representada de forma negativa – o país em conflito, o país vítima, o país que necessita de ajuda humanitária. Não estou a dizer que essa ajuda não é precisa. Mas não pode ser uma espécie de solução permanente, que nunca o é. É apenas a forma do poder e do contrapoder manterem uma situação artificial, perante a impotência da população, e da comunidade internacional manter de forma paternalista o seu poder no país.
Para além das questões políticas o que retém da Venezuela?
A língua é talvez o mais importante. As tonadas, canções melancólicas que eram entoadas pelos trabalhadores do campo, e que me influenciaram no último álbum. Tantas coisas. A Venezuela pode ser um país incrível e, para mim, é-o em grande medida. Mas também guardo memórias dolorosas. Passei parte do meu crescimento em esforço, a esconder quem eu era, de forma a tentar adaptar-me. Deixa marcas. Se me vestisse lá da forma que o faço aqui, de saltos altos ou saia, passaria por momentos de algum perigo físico. Agora celebro com toda a minha criatividade o tipo de coisas que lá me obrigava a esconder.
O ano passado criou um tema-vídeo, Fetiche, com o artista visual espanhol Carlos Sáez, em que os sapatos de salto alto são adoptados como uma espécie de metáfora de libertação interior.
O meu encontro com Carlos [Sáez] foi muito importante e esse vídeo meio improvisado celebra-o. Desde há um ano que me sinto a arriscar mais e em parte a ele o devo. Os sapatos de salto alto significam muitas coisas para mim. Em parte é essa emancipação, a possibilidade de ser quem quero ser. Gosto de andar de ténis ou de botas, mas de saltos altos é diferente. Existe um misto de precariedade e de vulnerabilidade – já caí algumas vezes, mas vou aprendendo sempre – mas ao mesmo tempo agrada-me essa instabilidade. Às vezes não é prático, e já fui importunado por causa deles, mas seria mais difícil para mim não os calçar. Às vezes evitar a possibilidade de ameaça dói ainda mais do que sentir verdadeiramente a ameaça. Talvez os saltos altos me confrontem com isso. É como se do topo dos saltos altos enfrentasse o mundo melhor, e ao mesmo tempo me permitisse chegar de forma simples ao mais profundo de mim próprio. Às vezes temos de conhecer os extremos para apreendermos os diferentes lados de nós mesmos. Não acredito na rigidez, mas naquilo que pode estar entre dois pólos. Interessa-me representar, e ao mesmo tempo questionar, esses pólos. Sejam eles os signos masculinos e femininos ou uma outra coisa qualquer.
Fala sempre a partir de um lugar subjectivo, que é o seu. No entanto o seu posicionamento acaba por ter uma ressonância colectiva. Ou política, se quiser. Tem esse entendimento?
Sim, embora isso nem sempre esteja presente em mim. Nem tem de estar. Às vezes sou eu apenas à procura de respostas. Faço-o para mim ou para os outros? Não sei. Não tenho uma explicação clara. Mas desejo que, algures, alguém, se possa sentir tocado pela minha música, pela minha arte ou pelo meu exemplo, se quiser.
Tem feito música para consolas e jogos-vídeo e tem dito que essa constitui uma das suas distracções quotidianas. Que outro tipo de actividades ou de rituais lhe interessam no seu dia-a-dia?
É verdade, se tiver regressado de uma digressão sou capaz de fazer qualquer coisa de complacente como passar horas em torno de jogos-vídeo, como se fosse uma criança, talvez como resposta às obrigações de andar na estrada. Gosto de ir também ao mercado. Sei o nome da mulher que me vende peixe ou da mulher que me vende queijo e sublimes vegetais. E é-me imprescindível passear pela natureza. Gosto de me perder. Existe quem goste de andar anonimamente na cidade. Eu gosto de o fazer no campo, passeando, sozinho, por entre as árvores e um horizonte sem fim.