Quando beijei o cadáver da minha bisavó, não o fiz para me despedir. Ao contrário da minha família, abalada pelo desaparecimento súbito, mas mais ou menos anunciado, da anciã, querendo acalmar os torpores da alma com um toque no corpo, fi-lo por outra razão. Para eles, a minha bisavó morta era ainda a minha bisavó viva. Para mim, era um invólucro, um lugar onde a minha bisavó havia habitado ao longo de 92 anos, 92 belíssimos e bem vividos anos. Ainda assim, quis beijar-lhe a testa, simular uma despedida para, no fundo, saber como se assemelha o toque de um cadáver. A testa daquele corpo estava fria, uma temperatura gélida que não devia ter-me surpreendido, mas surpreendeu, molhada pelas lágrimas de lamento de todos os meus familiares que me haviam precedido no cumprimento.
Há umas semanas, tive a felicidade de estar numa sala onde Gonçalo M. Tavares lembrava que, nos centros urbanos, praticamente não temos acesso à morte, a não ser nos jornais. Fala-se, de vez em quando, nas alturas em que um familiar de um conhecido morre, mas tirando isso, nada. Podemos até passar anos e anos sem ver um cadáver — eis um fenómeno totalmente novo, nascido há poucas décadas. Knausgaard, no seu A Morte do Pai, explica-o bem, logo nas primeiras páginas, destacando o modo como as morgues são o segredo mais bem escondido dos hospitais. Roubam-nos a morte da frente dos olhos, quando ela é tão importante para a forma como vivemos.
O distinto leitor talvez ainda não tenha dado conta, mas tenho um fascínio relativamente saudável com a morte. Passo os meus dias a pensar nela, no modo como ela chega. Na dor da perda quando vier, inesperada, roubar-me aqueles que mais amo ou, por outro lado, no instante em que me apanhar numa dor no peito ou num azar numa via rápida. Penso ainda mais nela quando estou prestes a adormecer, imagino se vou sequer chegar a acordar de novo ou se irei desta para melhor como toda a gente anseia ir: durante o sono, depreendendo que não acordarei numa agonia sem igual antes de me finar. Gosto da ideia da morte, não por querer apressá-la, mas por poder dizer-lhe na cara que aproveitei cada expiração da melhor forma, e que agora pode levar-me, sem dores adicionais ou arrependimentos. Provavelmente, apenas uma mágoa, que será igual hoje ou daqui por 50 anos: ter pena de não poder ter aproveitado mais dias neste planeta — ou noutro, que os tempos estão interessantes para as viagens interplanetárias.
Há qualquer coisa de mágico na morte: estava cá, agora já não está. Uma magia negra, talvez, já que opera em nome daquilo a que entendemos como maldade, por nos roubar o que mais é querido – o tempo, ou aquilo que com ele podemos fazer. Simultaneamente, parece-me importante estarmos na posse constante da informação de que vamos morrer. Eu, se tivesse de viver sem saber que tenho um prazo, detestaria existir. Seria um tédio absoluto partir do pressuposto que não haveria uma validade para a experiência. E depois instalar-se-ia um deixa-andar ainda mais veemente em mim, e nada seria apreciado, nada seria aproveitado, tudo seria adiado ou deixado de lado. “Amanhã logo faço isto”, haveria de dizer, com um encolher de ombros a preceito.
Este discurso optimista pode ser substituído por outro, mais fatalista: nós já estamos todos mortos, na medida em que é um evento que nos é garantido. Em simultâneo, uma vez que não sabemos o quando da partida — e ainda bem, Deus nos livre e guarde —, cada dia deve ser entendido como um bónus. “Hoje acordei, hoje fiz isto ou aquilo, hoje sobrevivi e regressei à fronteira do sono.” Só motivos de regozijo.
A minha bisavó morreu há mais de cinco anos, mas só há dias me lembrei do dia do enterro, por nenhum motivo em particular. Lembrei-me de ter carregado o caixão em conjunto com alguns primos e, lá perdida entre as memórias, estava a sensação ainda vívida daquele beijo. Embora nunca me tenha dado muito com a minha bisavó, sei que aprendi com ela que não devíamos chorar tanto pela morte de alguém. Porque é sempre a morte que eleva a vida.