Chegou a vez de Conan Osiris decidir se vai entrar na lista dos boicotes da Eurovisão
Há cada vez mais pressão sobre Conan Osiris, candidato português à Eurovisão, para boicotar a presença no festival. O que é que poderá acontecer, caso o venha a fazer?
O apelo que Roger Waters fez a Conan Osiris para que boicote a Eurovisão leva à pergunta: o que é que acontece se um vencedor do Festival da Canção desiste de participar? Contactado pelo PÚBLICO, Gonçalo Madail, da RTP, remete para o regulamento da edição de 2019, que afirma que “quaisquer dúvidas, divergências e/ou conflitos que decorram de situações previstas ou omissas neste regulamento serão rigorosamente analisadas pela RTP, cabendo-lhe sempre, enquanto entidade promotora, a decisão final”. Assim, será a RTP a decidir, se tal vier a acontecer. Mas, sublinha, não estão “a equacionar qualquer outro cenário que não o estabelecido”.
O ex-Pink Floyd pediu ao representante português para “recusar juntar-se ao branqueamento cultural daquilo a que um relatório recente da ONU chamou ‘os crimes de guerra e possíveis crimes contra a humanidade de Israel’”. Não teve, afirmou no sábado nas redes sociais, resposta. Conan Osiris apenas confirmou à SIC, no domingo, que tinha recebido a missiva, mas não comentava. O PÚBLICO não conseguiu contactá-lo.
Ao longo do historial da Eurovisão, uma competição que Israel ganhou quatro vezes em 46 anos, houve alguns países que decidiram anular a sua participação. Às vezes por motivos políticos, como a Áustria em 1969, que se recusou a ir a Madrid em protesto contra Francisco Franco, outras por razões diferentes, como quando, no ano seguinte, a mesma Áustria, tal como a Finlândia, a Noruega e Portugal, insatisfeitos por ter havido um empate entre quatro candidatos na edição anterior, também não participaram. A Itália boicotou em 1981 e 1982 por achar que não valia a pena participar num festival antiquado. Em 1975, a Grécia retirou-se em protesto contra a entrada da Turquia no concurso, por causa da invasão de Chipre, que tinha ocorrido um ano antes. Por sua vez, a Turquia não foi em 1976, contra o facto de a canção grega ter um teor político. Repetiram o boicote no ano seguinte e em 1979, justamente por causa dessa edição se ter realizado em Israel.
As regras tanto do Festival da Canção quanto da Eurovisão proíbem referências e gestos políticos, seja nas letras, seja na conduta dos intérpretes, mas pode acontecer e passar sem problemas. A canção que Israel levou ao festival no ano 2000, Sameach, da banda satírica PingPong, falava, numa altura em que Israel estava a retirar-se do Líbano e a negociar com a Síria, de um amigo em Damasco que tinha uma namorada israelita. Na actuação, a banda mostrou bandeiras israelitas e sírias. A televisão israelita renegou o grupo e a canção, que acabou por ficar em 22.º lugar, mas não foi desqualificada. Este ano, na competição estão os anticapitalistas e pró-palestinianos islandeses Hatari, que cantam Hatrið mun sigra (O ódio prevalecerá), assinaram um apelo ao boicote do festival e já anunciaram que vão protestar contra Israel em palco. Houve pedidos para serem impedidos de entrar no país, mas ainda estão na competição.
Na edição de 2017, que decorreu em Kiev, na Ucrânia, e foi marcada pelo conflito entre o país e a Rússia, que levou a que a concorrente russa fosse banida por ter actuado na Crimeia, Salvador Sobral usou uma camisola a dizer “S.O.S. Refugees” e foi advertido, mas ganhou na mesma. Este ano, na final do Festival da Canção, os portugueses Madrepaz, que interpretaram Mundo a mudar, pintaram as caras “com as cores de quatro povos que ou estão a passar por mudanças muito radicais ou precisam urgentemente de mudança”, referindo-se a Israel, Venezuela, Palestina e Brasil. Nada que se compare, no entanto, à edição de 1975, a primeira pós-25 de Abril, em que Jorge Palma e José Mário Branco, entre outros, escreveram canções abertamente políticas: “Democracia popular e ditadura proletária, pois claro!”, acabava Alerta!, a deste último (no fim, ganhou Duarte Mendes, um capitão de Abril, ficando em 16.º lugar em Estocolmo).
O apelo
Reagindo ao apelo de Roger Waters, Esther Mucznik, membro da comunidade judaica de Portugal, defende que o músico desconhece completamente a realidade de Israel. “O festival não é nos territórios conquistados depois de 1967”, lembra, para a seguir acrescentar: “Se fosse, até poderia perceber a polémica, mas em Telavive? O centro mais cultural, mais laico, mais vivo, mais criativo?” Na carta, Waters refere-se a Telavive como uma cidade que vive um apartheid. Mucznik, que tem lá família e visita a cidade regularmente, afirma que “se se andar na rua, vê-se população de todo o tipo, muitos árabes, israelitas ou não, por todo o lado”. “Estão nos jardins e nas universidades”, “são donos de comércio”, “andam nos autocarros”. Menciona ainda que a carta “mente” e que a analogia entre Israel e o sistema da África do Sul é “falsa”: “Pode haver desigualdade no tratamento, mas não há apartheid.”
Esther Mucznik afirma ainda que Waters ataca a cultura de Israel e que “quem defende o BDS [sigla de Boicote, Desinvestimento e Sanções, movimento palestiniano e internacional de boicote]” se esquece de “que a cultura em Israel é precisamente a consciência crítica de Israel” e muitas vezes vem a mais acérrima crítica da política israelita. “Estar precisamente a atacar o alvo que é essa consciência é um péssimo serviço a quem quer mudança e uma solução mais igualitária para a paz.”
Por outro lado, diz Mucznik, “a carta [que] é toda melosa, cheia de amor”, não vê “um pingo de amor em relação às crianças que apanham diariamente com os mísseis do Hamas na fronteira com Gaza, que não são os territórios ocupados. A cada momento essas crianças têm de fugir, com segundos para chegarem aos abrigos e quanto a isso não há uma palavra”.
“A crítica é absolutamente legítima e é bom que seja feita. E é feita por dentro”, explica, dando como exemplo o diário Haaretz. “Não há mais crítico”, assegura. “Eu própria sou muito crítica em relação a muitas coisas”, acrescenta. Também adianta que “não vale a pena invocar as condenações da ONU, que são tantas e desproporcionalmente maiores do que as que foram feitas a países onde não há democracia”. Além disso, “a Eurovisão é um espectáculo cultural, não é propaganda do regime”. “Como portuguesa”, conclui, preferia que Conan Osiris fosse a Telavive, para ver tudo com os seus próprios olhos.
Shahd Wadi, porta-voz do Comité de Solidariedade com a Palestina, que, em conjunto com o SOS Racismo e as Panteras Rosa, apelou a Conan Osiris para que boicotasse a ida a Israel no dia a seguir a ter ganhado o festival, tem uma perspectiva diferente. “Sabemos que Israel utiliza este festival como mais um instrumento político, não é algo inocente”, diz ao PÚBLICO. Quanto ao apelo de Roger Waters, vem reforçar a sua posição, contando que espera que Conan Osiris “perceba que a música dele é forte e chama mesmo a atenção”. “Ele tem muito poder, tem muitos fãs no mundo e pode ter um papel histórico em recusar ir”, continua. Das duas uma, explica: “Ou participa neste festival de um Estado de apartheid que utiliza a cultura como instrumento político, ou decide ficar ao lado da justiça e dos palestinianos.”
Não é demasiada pressão para pôr nos ombros de uma só pessoa? “Acho que o que mais dói a Israel é esta desistência de uma pessoa que não é qualquer pessoa. Tem tudo, como disseram Roger Waters e Salvador Sobral, para ganhar”, resume. “Dificilmente irá outra pessoa, se o Conan desistir”, vaticina. Se alguém toma uma “posição de estar do lado dos direitos humanos, outra não dirá que vai ficar do lado do apartheid”, crê. Também pensa que, se ele vier a desistir, “a RTP também desiste”. O apelo começou por Conan Osiris, explica, mas “é para as pessoas não irem a Israel”. Sente que poderá surtir efeito: “Ele tem mesmo tudo para isso, dizem as pessoas que o conhecem, o perfil, a sensibilidade de uma pessoa que se preocupa com os direitos humanos, com as boas causas.”
O músico Vítor Rua está entre os que consideram que, formalmente, o boicote deve partir dos Estados e não dos artistas, embora defenda, escreveu-o numa carta aberta a Conan Osiris, publicada na revista online de hip-hop e música electrónica Rimas e Batidas, que a decisão de participar ou não na Eurovisão tem potencial para ser uma das mais importantes da vida do autor de Telemóveis.
Sem esconder que é partidário da causa pró-palestiniana, Rua diz ao PÚBLICO que Osiris tem uma oportunidade única para marcar uma posição, pondo num prato da balança os direitos humanos e no outro toda a projecção internacional que o festival lhe pode trazer: “A pressão por parte do festival, de músicos e de organizações pró-Israel há-de ser muita e eu compreendo que seja complicado, sobretudo quando se tem hipóteses de ganhar, como parece ser o caso. Mas, quando se recebe uma carta de um dos maiores ícones do rock mundial, que nos fala de um assunto a que já éramos sensíveis, isso tem de contar…”
Na carta aberta que dirige ao artista que ganhou o Festival da Canção Vítor Rua procura mostrar a Conan Osiris as vantagens de um eventual boicote: “Se optares por aceitar o conselho do Roger Waters, garanto-te que isso te trará algo muito mais importante do que uma ‘mera’ fama internacional que este Festival da Eurovisão te poderá garantir! Terás o reconhecimento mundial de todos os músicos e pessoas em todo o mundo que lutam pelo fim deste genocídio diário na Palestina!” com Lucinda Canelas