A dieta e a mordida que moldaram os sons da nossa fala
Artigo publicado na revista Science revela que sons como “f” e “v”, usados em várias línguas modernas, são recentes e foram induzidos por uma mudança na dieta que, por sua vez, alterou a mordida dos seres humanos
Diga a letra “f” ou “v” e repare com o seu lábio inferior toca nos dentes de cima. Segundo um novo estudo publicado na revista Science, estes são dois exemplos de sons que foram introduzidos recentemente no discurso dos humanos. Trata-se assim de aquisições que não faziam parte da “base” sonora que se pensava ter sido estabelecida com o aparecimento do Homo sapiens, há 300 mil anos. A equipa internacional de cientistas defende que estas novas “notas” na banda sonora do discurso humano chegaram através de influências biológicas. Os argumentos que deitam por terra a teoria de que a gama de sons humanos permaneceu fixa ao longo da história humana, referem que a dieta para alimentos mais suaves mudou a mordida das arcadas dentárias que, por sua vez, moldou a nossa fala levando novos sons em idiomas de todo o mundo.
“A fala humana é incrivelmente diversificada, variando de sons omnipresentes como “m” e “a” às consoantes raras de cliques em algumas línguas da África Austral”, contextualiza o comunicado da Associação Americana para o Progresso da Ciência (AAAS, na sigla em inglês) que edita a revista Science. Segundo adiantam, apesar desta diversidade de músicas no mundo, acredita-se que a gama de sons que serve de base ao discurso humano “tenha sido estabelecida com o surgimento do Homo sapiens ao longo de 300.000 anos atrás - independente de quaisquer mudanças na biologia humana após esse período”. Ora, o artigo que foi publicado agora contraria esta ideia. O estudo foi realizado por um grupo internacional liderado por cientistas da Universidade de Zurique, envolvendo investigadores de dois Institutos Max Planck, na Alemanha, a Universidade de Lyon, em França, e a Universidade Tecnológica de Nanyang, em Singapura.
O comunicado adianta que esta nova perspectiva sobre a evolução da linguagem falada surge inspirada “pela observação feita pelo linguista [norte-americano] Charles Hockett em 1985, em que as línguas que promovem sons como “f” e “v” são frequentemente encontradas em sociedades com acesso a alimentos mais suaves”. A investigação feita a partir daqui adoptou uma abordagem multidisciplinar, juntando a biologia à fonética e linguística num exame que incorporou grandes bases de dados já existentes, modelos de simulação biomecânica e análises informáticas de informação.
“Há várias correlações superficiais que existem sobre a linguagem que são ilegítimas, e o comportamento linguístico, como a pronúncia, não fossiliza”, argumenta o co-primeiro autor Damián Blasi, citado num outro comunicado sobre o estudo divulgado pela Universidade de Zurique. Os cientistas perceberam assim que os sons da fala terão sido moldados por mudanças na mordida humana, à medida que os humanos deixaram de ser caçadores-recolectores e se dedicavam à agricultura. Com várias ferramentas, incluindo detalhadas simulações biomecânicas de diferentes estruturas faciais humanas, os investigadores observaram “uma mudança na estrutura dentária do adulto” com um reposicionamento dos dentes superiores dos adultos.
O progresso na tecnologia de processamento de alimentos e a moagem industrial reforçam esta transição. Assim, em vez da mordida normal, em que os dentes tocam uns nos outros de forma alinhada e que era necessária para alimentos mais rígidos e difíceis, as arcadas dentárias dos adultos terão mantido a posição da mordida juvenil, um tipo de mordida cruzada, com os dentes superiores ligeiramente mais à frente dos inferiores. E assim terá nascido “uma nova classe de sons da fala”. “Essa classe de sons, agora encontrada em metade das línguas do mundo, é conhecida como labiodentais - ou sons feitos ao tocar o lábio inferior nos dentes superiores, por exemplo, ao pronunciar a letra “f””, anota o comunicado da AAAS que acrescenta que o uso de labiodentais “aumentou dramaticamente nos milénios recentes”.
“A diversidade linguística, agora e no passado, é normalmente considerada independente das mudanças que ocorreram após o surgimento do Homo sapiens. Nós apresentamos evidências de paleoantropologia, biomecânica da fala, etnografia e linguística histórica que mostram que os sons labiodentais (como “f” e “v”) foram introduzidos após o Neolítico”, concluem os cientistas no artigo, rematando que estas descobertas sugerem, assim, que “a linguagem é moldada não apenas por contingências da sua história, mas também por mudanças na biologia humana culturalmente induzidas”.
Os resultados desta investigação estabelecem “conexões causais complexas entre práticas culturais, biologia humana e linguagem”, resume Balthasar Bickel, líder do projecto e professor na Universidade de Zurique, acrescentando no comunicado da instituição que estas conclusões também “desafiam a suposição comum de que, quando se trata de linguagem, o passado soa como o presente”. Afinal, o som da fala muda ao longo do tempo e empurrado pelos instrumentos oferecidos pela biologia.