“Tive que fugir à pressa à frente do fogo, com a minha mulher”
Nascido em terra de contrabandistas, o presidente do Supremo Tribunal de Justiça dirige hoje uma casa na qual as juízas ainda escasseiam. Feroz crítico dos megaprocessos, teme que a Operação Marquês possa ter um desfecho abrupto por causa de uma qualquer nulidade que inquine todo o processo. Retrato de um homem a caminho dos 68 anos que gosta de correr à chuva.
Que não. Que dali não saía, queria proteger a casa. E as chamas a aproximarem-se. António Piçarra lembra-se bem se de se terem metido à estrada apesar da recusa da mulher em arredar pé. Viram-se cercados pelo fogo na quinta de fim-de-semana que têm no distrito de Viseu. Ela gritava que queria ficar, recorda: “Eu não abandono a minha casa”. O juiz teve que se impor para escaparem. As horas seguintes haviam de lhe dar razão. “O fumo era tanto que já não se via nada. Quando tentei entrar no IP3 já não consegui. Ardia tudo à volta. Tive o discernimento de voltar para trás e seguir por uma estrada secundária”, descreve.
O casal de magistrados sexagenários passou a noite daquele mês maldito de Outubro de 2017, em que os incêndios ceifaram a vida a 50 pessoas, num quartel de bombeiros. Com outros fugitivos. No dia seguinte perceberam que houve gente que morrera nos cruzamentos por que haviam passado. Viram os carros calcinados, num cenário quase irreal de tamanha desolação. “A minha filha, aflita, não sabia se estávamos vivos ou mortos, porque não havia comunicações. Foi à nossa procura.”
Mesmo agora, com os olhos a traírem-lhe a emoção e com o cargo de presidente do Supremo Tribunal de Justiça, que na altura ainda não ocupava, a pesar-lhe nos ombros, António Piçarra não hesita: “Se penso que houve negligência do Estado? Sempre tive essa noção. Do Estado, mas também dos cidadãos. Daqui por quatro ou cinco anos pode acontecer o mesmo.”
Não tem ilusões, quando regressa ao refúgio de fim-de-semana – “Ardeu-me tudo, só sobrou a casa e o jardim”: bem vê as matas em redor a crescer outra vez, indomáveis. Pelo seu lado não esteve com meias medidas: “Mandei derrubar tudo, à excepção das árvores autóctones. Já não quero eucaliptos nem pinheiros nem nada disso, acabou.”
Plantar na quinta continua a ser um passatempo, a rotina é que mudou. Como quarta figura na hierarquia do Estado, António Piçarra não se limita a governar uma casa de seis dezenas de juízes. De uma forma ou de outra passam-lhe pelas mãos algumas das mais importantes questões da justiça portuguesa. Ri-se quando é questionado sobre o seu papel na solução encontrada para afastar dos processos de violência doméstica o controverso juiz Neto de Moura: “Não devo pronunciar-me sobre essa matéria.” Não fosse o seu voto de desempate e o responsável pelo acórdão das “mulheres adúlteras” teria ficado impune, já que o Conselho Superior da Magistratura se dividiu ao meio quando discutiu se neste caso era possível aplicar uma sanção disciplinar.
“Os dois acórdãos deste juiz que foram analisados deixaram-me chocado e revoltado. Posso garantir que a generalidade dos juízes portugueses não se revê naquele tipo de argumentação”, garante Joaquim Piçarra, em conversa com o P2. É verdade que a polémica teve o mérito de pôr a problemática da violência doméstica na agenda, reconhece, mas a que preço? “Criou-se a ideia de que todos os juízes são machistas e misóginos e que em vez de protegerem as vítimas protegem é os agressores — quando isso não corresponde minimamente à verdade. Há juízes e juízas que aplicam penas exemplares a crimes de violência doméstica, valorando — e de que maneira! — o depoimento das vítimas.”
Contra os “monstros ingovernáveis”
Quis o destino que não coubesse a este magistrado franzino nascido há quase 68 anos em terra de contrabandistas, Idanha-a-Nova, ocupar as pomposas instalações dos seus antecessores no Terreiro do Paço. A sede do Supremo está em obras, mas o que falta em rococós e dourados ao antigo convento de Alfama em que se instalaram os conselheiros enquanto as obras não terminam sobra em vista. Do rio até ao casario, desfruta-se de um panorama soberbo a partir do sóbrio gabinete de Joaquim Piçarra, a um passo até à Sé e das ruas atafulhadas de turistas. É por causa deles que os preços foram engordando nos estabelecimentos do bairro. Vale aos juízes haver pastelarias que já lhes fazem um descontozinho para residentes. “Pago 1,25 euros por um café e um pastel de nata. Nem sei se isto é legal”, graceja o magistrado. Aos visitantes é cobrado o dobro.
Ignora se algum dia voltará a trabalhar nos salões da Praça do Comércio: a idade impõe-lhe que se retire de funções em Maio de 2021, mais ou menos a meio do mandato de cinco anos para que foi eleito pelos seus pares. Por essa altura é possível que o processo que ficou conhecido como Operação Marquês já tenha avançado para a fase de julgamento. Ou não. Se há coisa contra a qual o presidente do Supremo tem clamado desde que assumiu o cargo, em Outubro passado, são os megaprocessos, a que apelida de “monstros ingovernáveis”.
“Preferia que não existissem”, observa. E invoca razões poderosas para que assim seja, embora admitindo que nada pode fazer contra eles, uma vez que cabe ao Ministério Público — e não aos juízes — organizar da forma que melhor entende a investigação da grande criminalidade. Mas voltemos à Operação Marquês: “E se ao fim de três ou quatro anos o processo chega ao Supremo e se encontra uma nulidade ou duas nulidades? Fica tudo anulado. Ora se houvesse vários processos a correrem de forma autónoma a anulação de uma das partes podia não inquinar o resto.” Os procuradores que defendem a existência de processos com centenas de volumes alegam que a sua divisão implicaria perda de conexões entre factos e arguidos, com a consequente perda de provas incriminatórias. “Nalgumas situações acredito que possa suceder”, admite o juiz. “Mas o desmembramento torna a justiça mais ágil e permite julgamentos mais rigorosos.”
Isto já para não falar daquilo que implica ser um único juiz a levar a cabo esta empreitada, como está a acontecer nesta fase do processo, um caso que tem como estrela de cartaz o ex-primeiro-ministro José Sócrates.
É mais de uma tonelada de documentação, a que se juntam quase 14 milhões de ficheiros informáticos, que coube em sorte ao magistrado de instrução criminal Ivo Rosa. Que até agora nunca se queixou de excesso de trabalho, assinala quase com surpresa António Piçarra: “Até ao momento não tenho notícia de que tenha requerido qualquer apoio. Penso que o Conselho Superior da Magistratura está em condições de lhe poder fornecer algum apoio, e estou convencido que o próprio Governo está sensibilizado para também colaborar na obtenção dos meios necessários para esse efeito.” Por apoio, quer dizer outros juristas que possam ajudá-lo a desenvencilhar-se no meio de tamanho acervo de informação e eventualmente mais funcionários judiciais.
Não que o presidente do Supremo ignore o quanto muitos magistrados estão habituados a decidir sozinhos, e o quão difícil é habituarem-se a trabalhar em equipa. De resto, o pacto para a justiça firmado em Janeiro de 2018 entre os parceiros do sector a pedido de Marcelo Rebelo de Sousa já previa a contratação de assessores técnicos para a criminalidade económica. Mas este é mais um capítulo em que tem poucas ilusões. “Apesar das esperanças do Presidente da República o pacto terá abortado. Não vejo até ao momento nenhuma iniciativa para o recuperar nem total nem parcialmente”, lamenta. Apesar disso, António Piçarra veria com bons olhos que os partidos políticos do arco do poder chegassem a um consenso sobre o modelo que pretendem para o funcionamento da justiça. “Que não pode ser uma disputa permanente em termos político-partidários, porque isso desestabiliza o funcionamento do sistema”, vai avisando.
Filetes de peixe
O pastel de nata com desconto já vai longe, as barrigas começam a dar horas. É dia de almoçar com os seus juízes da área do crime, quase todos bons garfos, no sítio do costume, um restaurante na Rua da Madalena. O magistrado enjeita os pratos do dia, de maior sustento, a favor de uns filetes de peixe. Deixa no prato os acompanhamentos, o arroz e a salada, e sai debaixo de chuva, abandonando os colegas ainda à mesa na conversa. Tem de se ir paramentar para a cerimónia de tomada de posse de quatro novos magistrados, que é como quem diz vestir por cima do fato a beca negra que guarda num armário do gabinete, mais o colar da praxe. Nem todos os empossados são juízes de carreira: um deles é um jurista de mérito, outro é procurador. Passarão a fazer parte do Supremo em pé de igualdade com os restantes conselheiros.
De guarda-chuva em riste contra os pingos grossos que começam a cair, materializa-se de repente ao seu lado, como que vindo do nada, o polícia à civil que lhe garante a segurança. “Gosto de correr à chuva”, confessa o juiz, como quem mata saudades dos domingos de manhã em que vai correr com os amigos ao Choupal. A vida agora é dividida entre Coimbra, cidade onde se fixou há muito e na qual chegou a dirigir o Tribunal da Relação, a casa de função que lhe arranjaram em Lisboa e a quinta. E se quem diga que governou com mão de ferro as instituições por onde passou, hoje é um bom dia para cimentar essa fama: irá colocar uma das magistradas a que vai dar posse numa secção do tribunal que não é a da sua especialidade, apesar dos protestos vindos de vários juízes para a deixar trabalhar na área que a juíza melhor domina, a das questões laborais. Durante a cerimónia a nova conselheira centra de propósito o seu discurso no direito do trabalho, mas isso não demove António Piçarra: é na secção cível que precisa mais de mão-de-obra.
Esta é, de resto, a área onde trabalhou na maior parte da vida, depois de uma brevíssima passagem pelo mundo da advocacia. Ainda não tinha acabado o curso de Direito quando se deu o 25 de Abril, e as notícias da Revolução dos Cravos chegaram-lhe com 24 horas de atraso, pela rádio, ainda sob a forma de golpe de Estado com contornos indefinidos. “Havia qualquer coisa a acontecer”. O quê, ele e os outros soldados não percebiam bem.
Como não teve a sorte da maioria dos colegas, cuja condição de estudantes do ensino superior foi suficiente para verem adiada a ida para a guerra, a transição para a democracia apanhou-o no meio do mato angolano, a cumprir o serviço militar. “Tinha havido uma emboscada dias antes”, recorda. A dureza da missão tinha contornos variados: “Os homens ficavam meses e meses sem ver uma mulher.”
Quarto de cinco irmãos, nesta altura ainda era solteiro. A mulher com quem havia de casar só a conheceu quando terminou a licenciatura e ingressou no Centro de Estudos Judiciários. Regressou de África com a política nacional ao rubro e uma Faculdade de Direito de Lisboa em Reuniões Gerais de Alunos contínuas. Mas nem nesta altura nem em momentos posteriores se sentiu seduzido por tais caminhos. O que não o impede, mesmo hoje, de defender aquilo que considera serem legítimos direitos da classe a que pertence: “Há juízes que estão mal pagos. É uma profissão exigente, desgastante.” Até já fez greve no passado, forma de luta nem sempre bem vista entre os próprios magistrados judiciais.
Indigna-o a forma como alguns dos que trabalham no interior são obrigados a deslocarem-se dezenas de quilómetros para fazerem julgamentos nos chamados tribunais de proximidade sem meios de transporte oficiais. “O Estado não tem de proporcionar condições para os juízes se deslocarem aos tribunais de proximidade? Automóveis, por exemplo. Os tribunais podem viver na disponibilidade do carro pessoal do juiz ou do procurador? Por que é que às comarcas com tribunais de proximidade não é atribuído um automóvel?”, dispara. “Se há viaturas para a GNR e para a PSP podiam existir também para os tribunais, digo eu”.
Futebol e viagens
A filha seguiu-lhe os passos na profissão e sofreu na pele as adversidades da vida de magistrada itinerante. Já a António Piçarra não assustam as longas viagens: percorreu quase toda a Europa ao volante com a família e conhece Espanha de lés-a-lés, ou não fosse um iberista convicto. “Se há algo que gosto é de viajar.”
Teve uma carreira discreta, só pontuada por alguma polémica quando, em 2014, era já vice-presidente do Conselho Superior da Magistratura, lançou fortes suspeitas sobre o processo de escolha dos juízes que iriam presidir às novas comarcas judiciais de todo o país. Falou em tratamento preferencial e em falta de transparência. Ainda não envergava a beca há muitos anos quando lhe caiu nos braços o caso do massacre da praia do Osso da Baleia, o homem que matou sete pessoas de uma só vez, mulher e filha incluídas, ao tiro e à paulada. Ajudado por um júri, acabou por condenar o réu à pena máxima, que na altura era de 20 anos de cadeia, apesar dos eminentes especialistas a argumentar em tribunal que o bancário homicida era inimputável.
Quando o motorista o conduz a casa já estão a terminar a primeira mão dos oitavos-de-final da Liga Europa, em que o Benfica defrontou o Dínamo Zagreb. Não viu o jogo, apesar de ser um adepto quase inconfesso de futebol. Condição que, apesar de tudo, parece não lhe ter toldado o discernimento. “Acho que neste momento o ambiente no futebol está tão conspurcado que o melhor seria os juízes não participarem nos órgãos sociais dos clubes desportivos”, observa. Há quem ainda o faça, pelo menos enquanto o estatuto da profissão não passar a proibi-lo.
Não se mostra preocupado com alguns alarmes que têm soado sobre o risco de ingerência do poder político no mundo da magistratura. Teme mais a desconfiança com que os cidadãos encaram o mundo dos tribunais. Um mundo em que há mais juízas que juízes, mas no qual constituem ainda uma minoria aquelas que conseguiram ascender ao Supremo. Não foi assim há tanto tempo que a classe era predominantemente masculina. A um mês das eleições para a vice-presidência do Conselho Superior da Magistratura, cargo com bastante mais peso do que a designação parece indicar, o magistrado não percebe como é que não apareceu ainda uma mulher na corrida. Tivesse ela surgido e era provável que ganhasse. De caras.