Beat Furrer, um compositor “para além dos clichés”
Figura de referência da criação musical do nosso tempo e fundador do prestigiado agrupamento Klangforum Wien, o compositor e maestro suíço-austríaco Beat Furrer estará em destaque nos Reencontros de Música Contemporânea de Aveiro e nos próximos concertos da Orquestra Metropolitana de Lisboa.
Considerado como uma das mais singulares personalidades do universo da música contemporânea, o compositor e maestro suíço-austríaco Beat Furrer (n. 1954) está de visita a Portugal a convite da associação l Arte no Tempo, que lhe dedicou um concerto monográfico e que promove a estreia nacional de algumas das suas peças, entre as quais Nero su Nero (2018), que será interpretada pela Orquestra Metropoliana esta sexta-feira, às 21h, no Teatro Aveirense, no âmbito dos Reencontros de Música Contemporânea, e sábado, à mesma hora, no Teatro Thalia, em Lisboa. Do programa destes concertos fazem parte também as obras Deux portraits imaginaires, N.º 15, de Pedro Amaral, e a Sinfonia nº 4, de Mahler, com a soprano Alexandra Bernardo e direcção de Reinaldo Guerreiro.
A trajectória criativa de Beat Furrer, caracterizada por uma constante reinvenção, tanto no campo do repertório instrumental de câmara e orquestral como da ópera e do teatro musical, tem sido distinguida com importantes prémios, entre os quais o Leão de Ouro da Bienal de Veneza pela peça de “teatro sonoro” Fama (2006), o Grande Prémio do Estado Austríaco (2014) e o prémio Ernst von Siemens (2018), considerado uma espécie de Nobel da música.
De que modo as obras interpretadas no concerto monográfico que o festival Reencontros lhe dedicou reflectem diferentes fases da sua carreira?
Na época em que concebi Retour an Dich [1986] estava a investigar as formas abertas. Na primeira parte, o violino e o violoncelo têm uma parte comum, mas o violoncelo continua as melodias do violino no seu registo, há uma sobreposição e uma interessante relação horizontal e vertical. No andamento central, que é fixo, os três instrumentos reúnem-se em agregados de notas em fortíssimo e estabelecem uma nova métrica. Há também um processo de repetição que ainda é perceptível. Para mim o fascínio da repetição consiste em colocar juntas memórias do passado para reconstruir o presente. Por isso escolhi como título Retour an Dich, uma citação da poetisa austríaca Friederike Mayröcker. Em obras posteriores como Spur [1998] também há estruturas repetidas, mas já não são percebidas [pelo ouvinte] como repetições porque ficam camufladas num processo de múltiplas camadas de padrões em movimento simultâneo que se filtram mutuamente. Nessa altura eu estava principalmente interessado na energia do movimento.
A outra obra de câmara em estreia em Portugal intitula-se Intorno al Bianco e a peça orquestral que vai ser tocada pela Metropolitana chama-se Nero su Nero. A dimensão visual influencia a sua forma de compor?
Há compositores que têm uma imaginação muito precisa acerca das cores como sucedia por exemplo com Messiaen, que era capaz de dizer coisas como: “aqui têm de tocar mais azul”. A minha imaginação musical tem mais a ver com os gestos. O branco aqui é metafórico, é como o branco da página em banco onde começamos a escrever e onde ainda tudo é possível. O movimento à volta deste branco é algo que está ligado à forma da obra, que começa com uma progressão harmónica muito lenta, como que se fosse em câmara lenta. Vão-se depois formando novas constelações harmónicas e vários modelos de movimento, portanto há uma mudança constante de cores. Neste movimento há elementos expressivos como o vibrato, ornamentações, pulsações regulares e irregulares ou uma linha rítmica ascendente ou descendente, movimentos à volta da fundamental e assim por diante. Depois chegamos ao ponto onde tudo está muito comprimido e se torna muito rápido, mas com a mesma ideia de transformação harmónica. Esta é a primeira peça que escrevi na qual experimentei esta possibilidade de um movimento constante do espectro sonoro. Depois na ópera Violetter Schnee continuei este trabalho.
É uma concepção que também se aplica à peça Nero su nero?
Nero su nero constitui o prólogo desta ópera. Neste caso, na orquestra temos mais possibilidades de trabalhar com as cores [sonoras], a imaginação pode ir desde a escuridão até ao som mais brilhante e cintilante, o que também está ligado ao libreto. Na ópera usei um coro, mas num plano de fundo. Há contudo também uma vocalidade na orquestra. Por isso é muito interessante poder fazer agora a obra sem coro e explorar essa qualidade vocal a partir do tecido instrumental, às vezes temos a sensação de que alguém está a cantar.
A ópera e o teatro musical têm um grande peso na sua carreira. Quais são para si as fronteiras entre estes dois géneros?
Para mim, a ópera é definida como uma obra de arte aberta que envolve a dimensão visual, o movimento em palco, o som e as palavras. Estes são elementos narrativos e têm de estar num perfeito equilíbrio. Nenhum deve sobrepor-se ao outro. Na ópera, a voz e a vocalidade estão no centro, mas as palavras não devem ser obscurecidas pela música. Por outro lado, a própria voz tem uma qualidade sonora para além do texto e das palavras. Se ouvirmos uma voz, ela já está a dizer qualquer coisa, mesmo se não entendermos o quê. Em obras como Fama [designada pelo compositor como teatro sonoro] o ponto de partida foi a voz falada e a sua qualidade musical intrínseca. Decorre de uma pesquisa sobre a voz falada, de estudos sobre a ressonância. A voz falada está constantemente a mudar e a mover-se. Em Fama tratava-se de partir do movimento da voz falada para o som enquanto numa ópera como Violetter Schnee o som da voz cantada está no centro, mesmo que possa surgir também o cantare parlando e que a ópera inclua uma uma actriz que apenas fala. Interessa-me particularmente o fenómeno do som que adquire um significado através das palavras ou que dá uma outra dimensão às palavras.
Mas há também um suporte instrumental no caso das intervenções da actriz?
Na ópera a actriz descreve a pintura de Bruegel, Caçadores na Neve. A sua descrição do que vê não está sincronizada com o som, mas quando ela fala por exemplo de “perigosas sementes” — há uma armadilha para pássaros no meio do quadro — ou quando fala dos pássaros nas árvores facilmente relacionamos essa imagem a uma dimensão sonora. Este é o primeiro passo para uma situação teatral. É fascinante poder provocar um espaço teatral através do som.
Quais são os compositores de ópera que mais admira?
São tantos! Se começar por Monteverdi, passando por Rossini e chegando até hoje seria uma longa lista. Uma das óperas mais influentes no século XX foi evidentemente o Wozzeck, de Alban Berg, mas também Janacék é fantástico. Na segunda parte do século XX é mais difícil escolher, mas o tempo o dirá. Sucede que nas décadas de 1960 e 1970 não havia grande interesse pela ópera. Tínhamos o Luigi Nono, que criou Intolleranza ou La fabbrica illuminata... mas em geral não era o tempo da ópera. Mas recentemente voltou a crescer o interesse.
O público da ópera contemporânea é completamente diferente do da ópera mais tradicional?
Depende de onde estamos. Teatros como os de Estugarda e Berlim estão constantemente a fazer ópera contemporânea e o público é bastante misto. Mas, por exemplo, em Paris há um público de ópera muito conservador e ao mesmo tempo um público para a música contemporânea que são totalmente diferentes. O mesmo sucede em Viena, ainda que a Ópera Estatal comece agora, pouco a pouco, a fazer ópera contemporânea. Há muitos teatros com temporadas que incluem duas óperas de Mozart, duas de Verdi, duas de Puccini, duas de Richard Strauss e pronto! Nem sequer os compositores de ópera muito importantes do passado estão presentes. Mas se houver um director artístico que coloque a ópera contemporânea como algo normal na temporada, acaba por funcionar. Por exemplo, em Frankfurt há muito que essa prática existe e é bem aceite pela assistência. A ópera como instituição tem uma máquina muito pesada que, por vezes, é pouco flexível e permeável à inovação. No entanto, acho que é possível quando entendemos como funciona e também se for apoiada. Por outro, lado há uma cena alternativa, que está interessada na ópera, mas que não tem meios financeiros suficientes para as produções e o mesmo sucede com vários festivais.
A composição é para si uma forma de investigação?
É uma pesquisa mas não no sentido científico. Procuro sempre ir para além dos clichés, de encontrar novas maneiras de contar a história, de a narrar. Muitas vezes o novo é entendido como inovação dos materiais. Mas nós trabalhamos com instrumentos com uma tradição longa. A questão central é encontrar novos caminhos para tornar perceptível o que já existe de diferentes formas. No passado, em diferentes períodos, criei diferentes modos de narração. Por exemplo, na ópera Begehren [na qual o mito de Orfeu é abordado a partir de Ovídeo e Virgílio mas também de textos de Hermann Broch, Cesare Pavese e Günter Eich] incluí diferentes perspectivas sobre os mitos, sobrepondo diferentes camadas, cada um dos textos interpretava os restantes, dava uma luz, sobre os outros. Em Fama, era mais uma ideia de uma dramaturgia de um filme e em Violetter Schnee desenvolvi uma forma caleidoscópica como se se tratasse de um mapa para contar a história. É algo comparável à leitura de um quadro, nesse caso não lemos a história como um texto, mas como de forma circular.
Que mudanças encontra entre o panorama da interpretação da música contemporânea desde que criou o Klangforum Wien em 1985 e a actualidade?Criei o Klangforum Wien porque era importante, para mim, ter uma resposta para aquilo que estava a fazer à secretária. Se um compositor escreve só para orquestra, é muito mais difícil porque ficamos com menos ensaios, menos concertos. Na altura, havia ainda poucos grupos especializados na nova música, mas a situação mudou completamente nos últimos 20 anos. Agora temos tantos instrumentistas fantásticos e há muitos novos ensembles de grande nível. Isto influencia também as orquestras, cada vez mais estas sentem a necessidade de tocar música contemporânea.
Como vê o papel do compositor na sociedade contemporânea?
Os compositores na nossa sociedade têm uma influência marginal mas temos de ver a questão a longo prazo, o que é difícil para nós hoje em dia. Uma pop star talvez esteja esquecida daqui a alguns anos. Em contrapartida, um compositor como Palestrina continua vivo.