Um paiol acima das nossas possibilidades
Os relatos das altas patentes indicam uma crise endogâmica do Exército, com desconfianças anteriores que o assalto a Tancos trouxe ao de cima.
Depois de 19 audições na comissão de inquérito a Tancos, sobressaem falhas de infra-estruturas e rotinas, num calendário iniciado anos antes do assalto de Junho de 2017. Já 12 anos após a construção, em 1986, existiam os primeiros problemas. O paiol com 36 hectares e um perímetro de 2700 metros estava acima das nossas possibilidades de meios e investimento.
“Tancos era uma infra-estrutura antiga numa zona isolada e os paióis necessitavam de uma revisão de fundo”, reconheceu, com desassombro, o general Campos Serafino, vice do chefe do Estado-Maior do Exército (CEME), Rovisco Duarte. As falhas foram descritas em Tancos 2017, Factos e Documentos, edição do Ministério da Defesa, há um ano: portas e fechaduras sem requisitos de segurança; rede de segurança periférica degradada nalguns pontos; pára-raios inoperacionais; casa da guarda sem comunicação de rede fixa; inexistência de comunicação com os postos de sentinelas e rondas móveis; comunicações por telemóveis de serviço; ausência de sensores e de videovigilância. Um verdadeiro caderno de encargos de obras urgentes.
“Tancos é um local isolado de outras unidades, à flor da rede”, sintetizou o general Pina Monteiro, chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas à data do assalto. Com a capacidade técnica dissuasora inoperacional, o factor humano passou a essencial, admitiram os oficiais. “A repartição [da segurança] por várias unidades não era a melhor situação”, equacionou o general Serafino. A falta de efectivos levou a que não houvesse unidade de comando, o que diluía a responsabilidade e permitiu os comportamentos detectados pós-roubo: 20 horas entre rondas, pouca diligência naquela missão – “era para dormir”. Estavam lá todos os elementos para uma tempestade perfeita.
O poder político nunca foi alertado
A degradação das instalações corre o risco de ter pai incógnito. Os oficiais, com mais ou menos conhecimento da situação, despacharam os seus relatórios para o patamar superior e subiram os degraus hierárquicos. Sem consequências práticas e com o sarcasmo de o assalto ter precedido o arranque de algumas obras. Tancos era filho de um Deus menor, não foi prioridade.
“A situação não era do meu conhecimento, sabia que havia problemas mas não conhecia os relatórios [das unidades de segurança] enviados para o Comando das Forças Terrestres”, garantiu o ex-CEME Rovisco Duarte. Os motivos do desconhecimento ficaram por apurar, o que se estranha, não tranquiliza e provoca incredulidade. O anterior chefe do Exército disse que a falta de efectivos e de meios, subjacente aos relatórios, não impediria a melhoria das condições: “Entidades responsáveis não actuaram preventivamente face às deficiências de Tancos” e “falta de acção do comando”, comentou.
O general Carlos Jerónimo, CEME entre Fevereiro de 2014 e Abril de 2016, admitiu, mesmo, nunca ter colocado a questão de segurança de Tancos aos ministros da Defesa, José Pedro Aguiar-Branco e Azeredo Lopes. “O poder político nunca foi alertado sobre Tancos”, corroborou o tenente-general Faria de Menezes, que esteve à frente do Comando das Forças Terrestres.
Desconhece-se o motivo desta omissão. Para manter a questão na esfera castrense em nome da autonomia do Exército? Para ocultar uma missão não cumprida? Todas as perguntas são legítimas enquanto este nó górdio não for desfeito.
“Não atirem tudo para cima dos militares, somos todos culpados. Os militares cumprem missões, os políticos alocam recursos”, desabafou o general Jerónimo: “O que tenho visto é menos efectivos e menos orçamentos”, disse. “Rovisco Duarte se calhar não sabe dizer que não”, ironizou o tenente-general Antunes Calçada, antigo comandante do Pessoal, sugerindo acomodamento do ex-CEME. Pode ser muito ou pouco, mas a ordem de grandeza não foi quantificada.
Aberta uma caixa de Pandora
É na gestão da crise pós-roubo, quando o assalto ultrapassa as paredes dos quartéis, ganha as primeiras páginas e preocupa a cidadania que algo se move. As exonerações dos cinco comandantes das unidades de segurança, seguidas da sua reintegração 15 dias após a conclusão das averiguações, tiveram consequências. Se queriam ser transparentes, introduziram dúvidas.
“Depois de Pedrógão [incêndios] e dos comandos [a morte de dois recrutas em Setembro de 2016], era preciso dar resposta à opinião pública, quis abanar as instituições, que nunca mais os comandantes dissessem que não faziam rondas porque não há homens”, justificou o ex-CEME. Os tenentes-generais Calçada e Menezes passaram à reserva por não concordarem com as exonerações. Pela gestão da crise no espaço público, e não pelo roubo.
Houve interferência política naquelas decisões? “Suponho que tenha havido, mas não tenho factos. Enquanto estive no activo não presenciei nada”, afirmou o tenente-general Calçada. “Nunca interpretei qualquer declaração pública do ministro da Defesa [Azeredo Lopes] como pressão”, declarou o general Pina Monteiro.
O assalto ao paiol passa a ser arma de arremesso contra o chefe do Exército. “Senti uma atitude crítica a partir da minha tomada de posse”, disse Rovisco Duarte, que substituiu Jerónimo como CEME, por este se ter demitido após as acusações de práticas discriminatórias contra alunos gay do Colégio Militar, em Abril de 2016. “No caso dos comandos, queriam-se refugiar nas averiguações”, protestou o general Rovisco, referindo-se aos seus pares.
Exército partido
Um ano antes do assalto, as posições desta guerra surda já estavam definidas no que alguns oficiais classificaram como “Exército partido”. Expressão demasiado grave e inadmissível num Estado democrático. “O tenente-general Calçada sempre esteve ao lado do tenente-general Menezes desde que tomei posse”, garantiu Rovisco Duarte na comissão parlamentar. A descrição muito crítica que fez à acção como chefe daqueles militares consta da gravação da audiência mas nada tem a ver com Tancos.
Reforça a sensação de endogamia, de um mal-estar tribal e de rivalidades de caserna. Há um episódio insólito que o ilustra. A 4 de Julho de 2017, para travar o que designou como “caminho do desastre”, o oficial Faria de Menezes teve uma audiência com o então chefe da Casa Militar da Presidência, com a esperança de que Marcelo, Comandante Supremo das Forças Armadas, actuasse. Relatou aos deputados que o Presidente já tinha recebido as chefias militares, pelo que não houve seguimento da sua iniciativa. Não esclareceu com que autoridade fez aquela diligência.