Além do vão de escada
A Lei da Ciência agora aprovada pelo Governo deveria ter um sentido de dignificação. A realidade, infelizmente, é a oposta.
Lembro-me de um email, ainda no início das propostas de resolução da precariedade no Ensino Superior e Ciência. Era de uma professora que reclamava contra essas propostas, porque assim perderia os bolseiros que trabalhavam na sua “pequena empresa”. O problema era passar a pagar impostos e contribuições sociais.
É um exemplo que retrata os problemas de um sistema capturado pela desvalorização e baixo custo, em que “jovens” investigadores são angariados com promessas futuras, acabando presos em situações de verdadeiro “vão de escada”.
O Governo produziu agora uma “Lei da Ciência”, a qual deveria ser um documento importante, definindo o ordenamento jurídico e impedindo situações como essa. A realidade é a oposta.
Este é um Decreto-Lei, em vez de uma Lei, sinalizando as dificuldades do atual ministro em criar consensos parlamentares.
Nesta “Lei”, o Estado assume-se como uma associação privada sem fins lucrativos (literalmente). É esta a figura jurídica escolhida para Laboratórios Associados, Laboratórios Colaborativos ou a Ciência Viva – Agência Nacional para a Cultura Científica e Tecnológica.
Dado que não é atribuída nenhuma figura jurídica às unidades de investigação e desenvolvimento, há a séria ameaça de este quadro agravar-se.
Atualmente, prolifera um esquema de externalização em associações sem fins lucrativos, que serve para contratar precariamente os investigadores cuja produção (e a receita dos projetos) é contabilizada nas universidades que albergam (e criam) essas associações.
Este esquema motivou várias advertências pelo Tribunal de Contas, mas como ainda não se concretizaram coimas, tudo continua na mesma e esta lei nada resolverá.
Esta “Lei” também nada faz para a adequação à Carta Europeia do Investigador e Código de Conduta para o Recrutamento de Investigadores. Não há definição de quadros de pessoal, nem a definição de rácios de contratação.
A liberdade académica e científica é mais uma vez confundida com a liberdade das instituições. Afirma-se a “auto-organização privada”, mas omite-se qualquer referência à liberdade individual do investigador.
Também não é instituído nenhum mecanismo que impeça a autocracia das nomeações, deixando estas instituições reféns de estatutos que podem ser dobrados por um qualquer reitor.
Temos um sistema com músculo, com doutorados reconhecidos internacionalmente, mas cuja estrutura tende para o invertebrado. Ora, se é verdade que o polvo é um animal bastante inteligente, convinha que o nosso sistema ganhasse outra robustez.
Há que reconhecer: combater a endogamia sem resolver os problemas de clientelismo apenas vai resultar na já conhecida “alta rotatividade”, mantendo a gestão do “antigamente”. É importante perceber por que se fazem reformas e com que objetivo.
Se um país com as debilidades do nosso decidir apenas formar doutorados em quantidade, sem cuidar das dinâmicas de emprego que lhe estão associadas, nem da estrutura que produz Ciência, manter-se-á como mero “exportador” de emprego qualificado, com um investimento significativo que outros vão recolher e aproveitar (sem agradecer). Os défices de produtividade não vão ser ultrapassados e teremos apenas um malabarismo, do qual são vítimas os investigadores mais qualificados.
Se, por outro lado, estruturarmos o emprego científico em carreiras consistentes, definirmos uma estrutura para as nossas unidades de investigação e laboratórios associados, trabalharmos os interfaces entre a Ciência e o Ensino Superior, bem como entre estes e a sociedade, regularizarmos o funcionamento da agência de financiamento e apostarmos em projetos estratégicos aliados à lógica de Missões (que preside ao próximo programa Horizonte Europa), então teremos algo integrado e bem pensado, que nos ajudará a sair das lógicas precárias que se mantêm de tempos passados.
Tal significa políticas públicas bem desenhadas, contrárias a esta lei do “vão de escada”.
O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico