Nos Narcóticos Anónimos são cerca de 10 mil os que procuram uma vida sem drogas
Todos os dias realizam-se 136 reuniões para ajudar quem ainda está a consumir a parar e para levar os que já estão "limpos" a permanecer assim. E a conseguirem, por isso, responder afirmativamente a questões como esta: "Senti-me hoje parte da humanidade?"
Entre o continente e as regiões autónomas, serão perto de 10 mil as pessoas que actualmente acorrem com regularidade às reuniões dos Narcóticos Anónimos (NA) para tentarem chegar a uma vida sem drogas. Como não existem inscrições para se estar na organização, esta estimativa tem como base o fluxo dos que vão passando pelos encontros. Todos os dias realizam-se 136. Os números são avançados ao PÚBLICO pelo coordenador nacional da 28.ª convenção anual dos NA, que termina neste domingo, na Zambujeira do Mar, um momento que António descreve como sendo uma oportunidade de “celebrar a recuperação” (estar sem consumir) e também de partilha de experiências, medos e expectativas.
Participam pessoas que já não consomem há mais de 20 anos e outras que começaram agora esta experiência de recuperação — que pressupõe a abstinência total de consumo de drogas, o que inclui o álcool. O que não quer dizer, sublinha António (não há apelidos porque o anonimato é a identidade da organização), que quem está ainda a consumir não possa estar entre os NA.
É por isso que existe um único requisito para se “ser NA”, uma organização que está presente em 131 países: “O desejo de parar de usar.” Não é coisa pouca para quem acumula anos de dependência, que muitas vezes levam a que a vida se vire do avesso. Sem recursos, sem contactos com a família, sem amigos, com problemas recorrentes com as autoridades. E com este problema que António diz ser o principal: como lidar consigo próprio?
Ele sabe do que fala. Com 43 anos, tem cerca de 20 de consumo de drogas duras. Esteve internado. Está sem consumir há seis anos. “A única forma que encontrei para conseguir estar limpo foi nos NA”, diz. E isto aconteceu porque nesta organização, que chegou a Portugal em 1986, e que agora tem o estatuto de instituição particular de solidariedade social, “a recuperação é sentida, por quem entra, como sendo possível”. Mesmo que existam recaídas pelo meio.
Tudo começa por uma primeira reunião. Em Portugal, de acordo com a organização, fazem-se 136 por dia, geralmente em igrejas, centros paroquiais ou juntas de freguesia, espaços que são cedidos gratuitamente. E depois é preciso ir a outra reunião: “Para quem começa, costumamos dizer o seguinte: 90 dias/90 reuniões.” Não existe uma imposição, diz António, tudo depende da vontade da pessoa. Mas quem já lá está sabe que quando se decide “pedir ajuda, todo o acompanhamento é pouco”.
Também são realizadas reuniões em prisões, centros de tratamento ou hospitais. E existem ainda encontros destinados a grupos específicos. Por exemplo, para jovens entre os 16 e os 24 anos. Não são muitos, embora “sejam hoje mais do que eram antes”, adianta António, referindo que esta evolução se deve essencialmente à entrada de novas drogas sintéticas no mercado.
Segundo as últimas estatísticas oficiais, a percentagem da população com consumos recentes subiu de 2,7% em 2012 para 5% em 2017. No grupo dos 15 aos 24 anos, esta proporção passou de 6% para 7,5%. Cannabis, cocaína e ecstasy foram as drogas mais consumidas.
António conta que nas reuniões “tende a desaparecer a sensação recorrente entre os adictos de que não se enquadram, sem que tal signifique anularem a sua identidade”. “Há um processo de identificação” porque os outros que já lá estão passaram pelo mesmo tipo de situações, tiveram os mesmos problemas, “sofreram a mesma solidão”, mas agora “estão noutro caminho” que também pode ser o seu.
Mais uma vez foi o que se passou com António. Tem um filho, vai ao ginásio, passou a ser “um membro produtivo da sociedade, que trabalha e paga impostos”. Continua, contudo, a ter o seu “padrinho”, uma figura tutelar nos NA que é de escolha livre, embora seja apresentada como sendo essencial não só para as horas de maior aflição, “em que uma palavra amiga pode fazer a diferença”, mas também para que o dependente em recuperação “possa trabalhar os 12 passos”. Este é um programa criado em 1935 nos Estados Unidos.
“É uma forma de conseguirmos crescer espiritualmente”, resume António. Nas reuniões, é sempre o primeiro passo que está presente, como uma espécie de mantra que alerta para as armadilhas que podem levar a novas recaídas. Reza assim: “Admitimos que éramos impotentes perante a droga.” Embora não professem nenhuma religião em concreto, os NA acreditam que no caminho que irão fazer poderão contar com a ajuda de um “poder superior que torna possível aquilo que parece impossível”. Mesmo que seja sempre um dia de cada vez, há respostas que podem passar a ser positivas a perguntas como esta: “Senti-me hoje parte da humanidade?”