Rute e João decidiram pegar nos filhos e dar uma volta ao mundo num veleiro

Era um velho sonho e decidiram realizá-lo em família. O casal, com três filhos, quer fazer-se ao mar por dois anos (e zarpou nos inícios de Julho). Como se planeia uma viagem assim?

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Rui Gaudêncio

O som ensurdecedor chega-nos antes de vislumbrarmos o barco, o casco azul-escuro a subir por entre andaimes no estaleiro do Centro Náutico de Algés. A bordo, ainda está tudo fora do sítio. Há portas por lixar no convés, ferramentas e cabos espalhados por todas as divisões. João Monarca está algures no fundo do porão, a picar com um martelo-pneumático uma porção do casco que escapou aos últimos trabalhos. Quer garantir que nada falha antes da viagem.

“Éramos para ter partido em 2018, mas o barco que comprámos é muito antigo e precisou de muita reparação”, conta a mulher, Rute Gonçalves, que é quem nos mostra os cantos à casa e nos guia por esta aventura em família. Se tudo tiver corrido como planeado, este fim-de-semana o veleiro já estará na água, pronto para os últimos testes de mar. A ideia é partir em Abril, ainda que não exista uma data fixa para já [Entretanto, chegados a Julho, a aventura já começou: partiram no dia 6]. “Nesta viagem, queríamos que o relógio e o calendário não fossem uma coisa que estivesse sempre presente.”

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O sonho de sair à vela pelo mundo é de João, confessa Rute. “Quando começámos a namorar, ele já me ia sussurrando que queria fazer isto.” Estudou Engenharia Naval e é actualmente proprietário de uma empresa marítimo-turística em Cascais. É dele “esta paixão dos barcos”, a vontade de “atravessar oceanos”, de “ir a caminho do desconhecido”, de “superar-se a si próprio”. Mas quando nasceu a primeira filha do casal, Marta, hoje com 13 anos, sentiram que este era um sonho para ser realizado em família. “Uma viagem destas marca a família e, de uma forma profunda, a personalidade dos miúdos e a forma como eles vêem o mundo. É uma oportunidade de nos conhecermos uns aos outros e a nós próprios.”

Quando a terceira filha nasceu, marcaram a data. Queriam que a mais velha ainda estivesse numa idade em que “se envolvesse e quisesse ir”, que Carmen, de quatro anos, ainda não estivesse na escola e que Afonso, com sete anos, já tivesse aprendido “as letrinhas e os números”. Para Rute, a família é a principal motivação. “Quero ter tempo de qualidade com eles, ensiná-los e aprender com eles, vermos o mundo em conjunto e mostrar-lhes outras formas de viver, outras culturas e pessoas, para que depois eles também possam fazer as suas escolhas e decidirem que tipo de vida querem ter.”

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Por isso, vai repetindo às crianças: isto não são férias nem turismo. Não se trata de ir ver monumentos, de ficar em hotéis ou jantar fora todos os dias. É uma experiência conjunta de crescimento pessoal. Para já, estão a habituar-se “a viver com menos” e a perceber que “são felizes à mesma”. A roupa seleccionada por cada um para a viagem cabe “num caixotinho”, os brinquedos foram escolhidos a dedo. Afonso, por exemplo, “adorava brincar com pistas de carros”, mas como não dará para trazer nenhuma a bordo, começou a criá-las com caixas de cereais. Corta-as, põe fita-cola, faz “altura com as tampinhas do leite”. “No limite, tem uma pista diferente todos os dias.”

As aulas também já estão a ser dadas em casa. Marta “já tem na cabeça que quer ser bióloga marinha”, propôs-se fazer projectos ligados à “fauna marinha do Mediterrâneo” e às conservas, no âmbito do ensino lectivo, feito através de uma escola norte-americana. Nos últimos anos, quase tudo tem girado em volta da viagem. “A prenda de Natal do Afonso foi uma cana de pesca, a da Marta um colete de mergulho, a minha um casaco de mar.”

Rute pediu uma licença sem vencimento na Galp, onde trabalhava como gestora de marca. João vai deixar a empresa com um amigo. Tinham uma “vida boa, estável”. Uma casa com quatro quartos num condomínio com piscina. Gostavam do que faziam profissionalmente, eram felizes. E isso é também uma mensagem que Rute quer deixar passar: “Não é preciso as coisas estarem mal para irmos atrás de um sonho.” Não é um corte absoluto com o quotidiano, “é uma pausa”. E um desafio. “Ainda me dá aquela dorzinha de barriga quando penso em algumas coisas e acho que vai continuar a dar-me muitas vezes porque, de facto, vamos ter muitos desafios.”

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As noites a bordo são aquilo que está a causar-lhe maior tensão. Durante as travessias oceânicas, tem sempre de ir alguém a navegar o veleiro e Rute vai ter de pegar no leme. “Fiz algumas férias a bordo, mas nunca tive esta responsabilidade de ir eu a comandar um barco. Estou a preparar-me para isso.” Tirou o curso de patrão local, de vela, de primeiros socorros.

Os primeiros meses vão ser passados no Mediterrâneo, em zonas costeiras, para “dar confiança à família” e se tornarem “todos marinheiros”. Os filhos não têm “praticamente nenhuma” experiência de barco – os mais novos passaram apenas uma noite a bordo, já o veleiro estava atracado na marina, antes das obras de restauro. Mas, com isso, Rute não está preocupada: “Os miúdos adaptam-se com imensa facilidade”. “O maior desafio será vivermos juntos, 24 horas por dia, num espaço tão pequeno.” Há quatro quartos pequenos, uma sala, duas casas de banho, todo o convés, mas pouco por onde fugir num barco com 15 metros de comprimento cercado de mar. “Vai ensinar-nos muito a respeitarmo-nos uns aos outros e a sermos mais tolerantes.”

Durante mais de dois anos, vão andar “sempre atrás do Verão”. “Lá para Setembro, vamos para as Canárias, Cabo Verde. Depois, a partir de Novembro, vamos apanhar o início da época da travessia do Atlântico.” Contam ficar alguns meses nas Caraíbas, fazer o canal do Panamá e, no início de 2020, atravessar o Pacífico, de ilha em ilha, até ao Norte da Austrália. Os planos passam depois pela Indonésia, Tailândia, Vietname, “um bocadinho” pelo Oceano Índico, Índia e subir pelo canal do Suez de regresso ao Mediterrâneo e a Portugal. “Eu gosto de planeamento, portanto tenho um Excel com algumas datas e países. O meu marido fica doente quando me vê com ele aberto.” Ainda não partiram e o documento “já mudou várias vezes”. Domum, palavra em latim para “casa”, “lar”, foi o nome escolhido para o veleiro. Em breve, começa a sê-lo de uma forma muito literal e itinerante.

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