Em Évora há “vacas alegres” e o seu número não vai ser reduzido
É possível juntar sustentabilidade ambiental, económica e social e ao mesmo tempo garantir bem-estar animal? Na Herdade do Monte Trigo garantem que “sim” e asseguram que, ali, “as vacas são alegres”. Reduzir o número de bovinos é que não está nos planos.
Na Herdade Monte Trigo o número de cabeças de gado bovino não vai diminuir. Nem agora, nem a médio prazo. Pelos 1100 hectares de terra nos arredores de Évora espalham-se cerca de 2000 animais dedicados à produção de leite e à criação intensiva de vitelos de raça Angus, mas a quinta tem capacidade para nove mil e a instalação agendada para breve de uma unidade de engorda vai fazer subir ainda mais o número de vitelos ali criados.
É possível aumentar o número de bovinos e cumprir o Roteiro para a Neutralidade Carbónica 2050 (RNC2050) proposto pelo Governo? Os responsáveis pela unidade agrícola dizem que “sim”. Asseguram que já o fazem, “até acima” do que já lhes é exigido, e que o farão “cada vez melhor” no futuro.
Nas vacarias da Monte Trigo há cerca de 1600 animais, a maioria da raça Holstein Frísia (originária dos Países Baixos e Alemanha) para a produção de leite. Dali saem 10 milhões de litros por ano. Para a criação de vitelos da raça Aberdeen Angus (Irlanda) existem cerca de 400 bovinos, a maioria da raça Blonde d’Aquitaine (originária de França), que serão cruzadas com 10 reprodutores puros Angus. Cerca de 70% da alimentação de todos estes animais é também produzida na herdade alentejana.
O leite e carne têm como destino final os supermercados Pinto Doce e lojas Recheio da casa mãe, o grupo Jerónimo Martins (JM), que desde 2014 entrou na produção agro-alimentar.
Actualmente, a Best Farmer, empresa da JM dedicada à produção de carne Angus, tem três explorações em funcionamento: Manhente (perto de Barcelos) com capacidade máxima para cerca de 1500 animais/ano; Cartaxo, com cerca de 80 hectares e capacidade máxima para cerca de 7500 animais/ano e a Monte Trigo. A produção da Best Farmer já representa cerca de 40% do total de vendas de carne do Pingo Doce.
“Jogo aberto”
António Serrano, CEO da Jerónimo Martins Agro-Alimentar (JMA), fala com entusiasmo de tudo o que se passa na Monte Trigo, herdade comprada a uma família belga e onde há cerca de um ano começou o projecto da carne Angus.
O antigo ministro do Desenvolvimento Rural e das Pescas do Governo socialista de José Sócrates (2009-2011) guia os jornalistas pelas instalações da exploração, repetindo com frequência expressões como “sustentabilidade económica, ambiental e social”, “bem-estar animal”, “economia circular”, “controlo da produção”, “qualidade”.
“Aqui temos o jogo aberto, mostramos tudo o que fazemos e como fazemos. E o que fazemos tem sempre presente o bem-estar animal e a sustentabilidade ambiental. Somos muito escrutinados nestas matérias e vamos mesmo além do que nos é exigido”, garante António Serrano.
Há um ano, conta o CEO da JMA, chamaram uma especialista norte-americana em bem-estar animal que lhes indicou os caminhos que deviam seguir e que continua a acompanhar o projecto. Hoje, a vacaria da Monte Trigo “é única a nível nacional” e “o uso da tecnologia tem um papel central na produção de leite” e na qualidade de vida dos animais.
Produção de leite ao som de música
Os espaços de acomodação das leiteiras estão longe de lotados, “para que os animais tenham espaço e não se atropelem”. A produção de leite é feita ao som de música calma, do tipo da que se se pode num espaço propício à meditação ou relaxamento. Existem enormes escovas eléctricas de forma cilíndrica onde as vacas se coçam permanentemente. Ventoinhas de largas pás refrescam e arejam o local e os bovinos são borrifados por chuveiros colocados sobre a zona comedores o que, especialmente no Verão quente do Alentejo, “proporciona níveis de bem-estar aos animais acima do normal”. “Um dos objectivos é evitar ao máximo stressar os animais”, garante Serrano.
Cada uma das vacas tem amarrado ao pescoço um colar electrónico que transmite para um computador os dados vitais dos animais e os seus níveis de stress, permitindo saber ao minuto o estado de saúde de cada um dos bovinos.
Este sistema permite também detectar a janela de cio do animal - a melhor altura para ser inseminada - e “conseguir uma redução significativa de utilização de hormonas reprodutivas e de fármacos”.
Reutilização de excrementos
As inovações na vacaria da Monte Trigo não se ficam por aqui. Os excrementos dos animais são tratados e utilizados no ciclo de produção. Os líquidos são depositados em enormes piscinas e serão depois juntos às águas das regas como elemento fertilizante. Já os sólidos são transformados numa espécie de serradura fina inodora e utilizados nas camas dos animais das vacarias.
A visita segue para os extensos pastos nos montados da herdade, onde andam as vacas que dão à luz os vitelos da produção intensiva da raça Angus.
“Também aqui a nossa preocupação vai para a sustentabilidade ambiental e a captura de CO2”, diz António Serrano, enquanto passeia pelas “pastagens biodiversas permanentes, que se auto-regeneram sem necessidade de intervenção no solo.”
“A rega é feita com telegestão dos pivots de irrigação e os sensores de humidades, entre outras tecnologias, permitem uma utilização racional da água, evitando desperdícios”, explica o CEO da JMA.
Em projecto está a utilização de drones para controlo da propriedade e da sua população animal, bem como na detecção de incêndios florestais.
O objectivo da empresa, como qualquer outra, é crescer, aumentar a produção, “mantendo os níveis de sustentabilidade ambiental e qualidade dos produtos que os consumidores e os padrões do grupo exigem”, diz Serrano.
Um ministro com uma intenção “bondosa”
No que à criação de bovinos de raça Angus diz respeito, a próxima meta é aumentar o número de animais de quatro mil/ano para 18 mil/ano.
E é aqui a que a polémica chega à conversa. Mais bovinos nos campos chocam de frente com Roteiro para a Neutralidade Carbónica para 2050 (RNC2050) apresentado recentemente pelo Governo.
O ministro do Ambiente e da Transição Energética, Matos Fernandes, começou por dizer que, no que ao bovinos concerne, o objectivo passava por uma redução da população em Portugal entre os 25 e os 50% de modo a reduzir as emissões de metano emitidas pelos animais.
“Acho que o ministro usou esses números para lançar um alerta, uma chamada de atenção. Não penso que que o seu objectivo seja tão radical. Talvez o ministro tivesse até uma intenção bondosa ao avançar com esses números para marcar a agenda”, afirma António Serrano.
O CEO da JMA fez estas declarações antes do PÚBLICO revelar, nesta sexta-feira, que esses números já foram revistos pela equipa técnica da agricultura que acompanha o RNC2050, apontando agora para uma redução entre 20 e 30%.
“Portugal é deficitário na produção de carne de bovino, importando 60% da carne que é consumida e o consumo nem tem estado a aumentar. Ao aumentar a produção estamos a reduzir as importações. Logo, estamos a conseguir um grande impacto económico e ambiental positivo. As coisas têm é de ser feitas com sustentabilidade e é isso que fazemos aqui. E há ainda a vertente do desenvolvimento económico do interior, ajudando algumas redes de produtores que trabalham connosco”, garante Serrano.
O antigo ministro da agricultura assegura que na herdade tudo o que é feito em termos de sustentabilidade ambiental e “compaginável com a legislação portuguesa e da União Europeia”. “Estamos à frente da discussão e a ir além do Roteiro para a Neutralidade Carbónica. Vamos continuar a cumprir e aqui isso não passa pela redução no número de bovinos.”
Já na hora da despedida António Serrano deixava outra garantia, agora mais prosaica: “Há tempos falou-se em vacas felizes. Aqui não são só felizes, são também vacas alegres.”