Foi uma mulher quem primeiro atravessou a ponte D. Maria Pia, no Porto

Adelaide Lopes, mulher do engenheiro responsável pelas obras na ponte, teimou que seria a primeira a fazer a travessia mal as duas partes estivessem unidas. Fê-lo em precário equilíbrio, a 60 metros de altura, sem qualquer protecção, perante a estupefacção dos operários.

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Havia dois anos que se tinha iniciado a construção da ponte que iria ligar as duas margens do Douro e permitir que o caminho-de-ferro de Lisboa chegasse finalmente ao Porto e se unisse às linhas do Douro e Minho. Projectada por Théophile Seyrig e tendo Gustave Eiffel como empreiteiro, foi à data a ponte com o maior arco do mundo, considerada por isso uma obra arrojada e um dos maiores feitos da engenharia portuguesa.

As obras começaram a 5 de Janeiro de 1876 e ficaram concluídas em 28 de Outubro de 1877 para serem inauguradas a 4 de Novembro pelo rei D. Luís e a rainha D. Maria Pia.

Não se sabe se foi por capricho — para atravessar a ponte primeiro do que a rainha — que D. Adelaide Lopes, mulher do engenheiro Pedro Inácio Lopes, insistiu em transpô-la semanas antes, assim que os operários ligaram com duas vigas metálicas as duas partes do grandioso arco que sustenta o tabuleiro.

Obras começaram a 5 de Janeiro de 1876 e ficaram concluídas em 28 de Outubro de 1877
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Obras começaram a 5 de Janeiro de 1876 e ficaram concluídas em 28 de Outubro de 1877

A história é contada pelo engenheiro ferroviário e escritor Frederico de Quadros Abragão, no livro Caminhos de Ferro Portugueses – Esboço da sua História (1956), que cita, por sua vez, a Revista das Obras Públicas e Minas de 1902. É aqui que o biógrafo de Pedro Inácio Lopes relata a história de D. Adelaide, que “aceitara de bom grado quanto havia de incómodo e desagradável em mudar de residência da sua bela vivenda da rua de Santo Ildefonso, no meio do bairro oriental da cidade, para um prédio do trivial feitio portuense, três janelas de frente, contíguo ao cemitério do Repouso” na rua de S. Victor.

Nesta morada, que ficava mais próximo do estaleiro, Adelaide Lopes assistiu à construção da ponte, desde o momento das fundações ao erguer dos pilares metálicos e o progressivo avanço dos dois meios arcos e das duas frentes do tabuleiro. Diz o biógrafo do seu marido que a senhora “tinha acabado consigo ser a primeira a passar a ponte” e por isso acompanhava atentamente os trabalhos para não deixar escapar o momento oportuno em que as duas metades da obra se uniriam.

“Fala-se um dia [que terá sido em Outubro de 1877], enfim, em colocar o último par de longrinas; é o momento. D. Adelaide Lopes, no dia seguinte, apresenta-se no estaleiro do Seminário, disposta a passar para o outro lado. Ninguém a demove do seu propósito, todos sabem que seria em vão tentá-lo.” Por ser a mulher do engenheiro? Por ter mau feitio? Por ser teimosa? Era D. Adelaide uma coquette, ou uma mulher de génio, uma entusiasta da engenharia? O relato nada nos diz sobre o seu carácter. Apenas que era seguramente dotada de uma grande coragem, como veremos em seguida:

“Já seu marido se submete, dando-lhe o braço. Caminham por meio do material disperso, agora na trincheira escabrosa, logo sobre o tabuleiro incompleto e sem guardas, topando aqui num ferro, ali num toro, entrevendo a seu pés, através da malha, 60 metros mais abaixo, as torvas águas do Douro.

Rainha D. Maria Pia deu o nome à maior obra de engenharia do reino e inaugurou-a com D. Luís a 4 de Novembro de 1877
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Rainha D. Maria Pia deu o nome à maior obra de engenharia do reino e inaugurou-a com D. Luís a 4 de Novembro de 1877

Chegam enfim ao meio; entre as carlingas não há mais do que duas distantes longrinas, acabadas de rebitar. É forçoso ir um a um.

Ela não hesita; segue, adiante, pé ante pé. Mal se equilibrando na mão do operário mais próximo, suspenso no bailéu; amparada, por assim dizer, pelo olhar de nós todos os que a seguíamos; vai sobre o estreito banzo no seu sonho de esposa amantíssima, quase como a sonâmbula da Ópera!

Passou, está salva. Acolhida pelos aplausos de nós todos, chega ao encontro da margem esquerda. Todavia o voto está apenas meio satisfeito; alguém que viesse do lado de Lisboa poderia jactar-se da prioridade.

Por isso, ei-la de volta, caminhando mais afoita, afrontando de novo o perigo, repetindo a prova; contente alegre, feliz.”

Algumas semanas depois, uma segunda mulher atravessaria a ponte, vinda, sim, “do lado de Lisboa”, mas confortavelmente sentada numa carruagem salão do comboio inaugural. A rainha D. Maria Pia, que deu o nome à maior obra de engenharia do reino, inaugurou com o seu marido, o rei D. Luís, a ponte a 4 de Novembro de 1877. Tê-la-ão acompanhado, provavelmente, algumas aias, mas nenhuma destas mulheres foi a primeira a cruzar as “torvas águas do Douro” a 60 metros de altura.

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