Penas mais pesadas para agressores? "Não é esse o caminho", diz ministra

Mariana Vieira da Silva acredita que Portugal tem um "quadro legislativo robusto" para lidar com a violência doméstica. E considera fundamental que as mulheres que dela são alvo confiem no sistema para que "se queixem e saiam da situação em que vivem". A formação de magistrados e polícias é uma das apostas.

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Foi sua a sugestão de que se assinalasse, pela primeira vez, um dia de luto nacional pelas vítimas de violência doméstica. E na Presidência do Conselho de Ministros como em vários outros locais fez-se um minuto de silêncio, dia em que o Governo aprovou um conjunto de recomendações para lidar com este crime e garantir mais apoio às vítimas. As propostas, diz a ministra da Presidência e da Modernização Administrativa, Mariana Vieira da Silva, serão agora analisadas por uma equipa técnica multidisciplinar liderada pelo procurador Rui do Carmo que, em três meses, deverá apresentar medidas concretas.

Muitas mulheres têm morrido em contexto de violência doméstica. O que fazer para acabar com isto?
Uma das coisas que é preciso fazer é conhecer os números ao detalhe, e essa é uma das missões da comissão técnica multidisciplinar criada recentemente pelo Governo. Quando olhamos para os dados dos últimos anos verificamos duas coisas: de há dez anos para cá houve uma redução mas depois uma estabilização dos números. Temos alargado a rede de apoio a estas famílias e temos experiências muito bem-sucedidas, mas também problemas de relação entre os diferentes intervenientes do processo. Sejam as forças policiais, seja a rede nacional de acompanhamento, seja o Ministério Público. O nosso foco é melhorar essas interligações. Coisa que se faz com troca de informação, com a harmonização de conceitos e com a criação de plataformas comuns. Por outro lado, os relatórios também identificam [como problemática] a questão do apoio nas primeiras 72 horas após a apresentação da queixa da vítima por violência doméstica. Vai ser sobre essas 72 horas que procuraremos agir. 

Um dos anúncios do Governo relaciona-se com a criação de gabinetes de apoio às vítimas nos Departamentos de Investigação e Acção Penal (DIAP). Mas nem todos terão condições para isso, em especial os que abrangem grandes áreas populacionais.
Assinámos protocolos com a ministra da Justiça e organizações não governamentais para alargar esses gabinetes a mais seis DIAP. A capacidade de alargamento depende de eles terem equipas específicas para esta área. A ideia é esse alargamento continuar a ser feito, e não parar por aqui.

Tem noção de que a secção do DIAP de Lisboa especializada na violência doméstica tem, neste momento, três procuradores ao serviço, e que só um deles é perito neste crime?
Temos noção que existe uma carência de especialização, por isso a prioridade é formar e especializar mais pessoas. A comissão técnica multidisciplinar ficou de assegurar que a formação aos intervenientes nestes processos tenha módulos comuns aos magistrados, às forças policiais e à rede de apoio às vítimas. Através dos fundos comunitários teremos 6,5 milhões de euros para formação específica.

O procurador que no Tribunal de Almada trata destes crimes tem 600 processos em mãos. Pode ser responsabilizado se num deles ocorrer um homicídio?
A perspectiva não é de responsabilizar individualmente nenhum dos intervenientes. O sistema de sinalização de vítimas também tem de permitir aferir da gravidade de cada queixa, porque nem todas são iguais. Existem classificações que permitem diferenciá-las. O acompanhamento que se segue à queixa deve seguir também esse nível de gravidade.

Em Espanha este tipo de agressores passaram por regra a ser presos preventivamente. Será um caminho a seguir?
Segundo a generalidade dos relatórios [de avaliação] o quadro legal que temos é o adequado, possuindo os mecanismos necessários para afastar o agressor da vítima. Não temos prevista neste momento nenhuma mudança nessa área.

Mas já admitiu vir a fazer pequenas mudanças cirúrgicas na lei.
Não quer dizer que a equipa de trabalho multidisciplinar não venha a sugerir algumas dessas alterações. Mas a nossa ideia é a de que o quadro legislativo é robusto, não carece de nenhuma medida fundamental. Uma das coisas incluídas na resolução aprovada em Conselho de Ministros é a possibilidade de viabilizar, no quadro da nossa Constituição (que proíbe tribunais especializados por crime) soluções destinadas a permitir que, num mesmo tribunal de competência mista, possam ser julgadas matérias de responsabilidade parental, violência doméstica e maus tratos.

Está portanto posto de lado um endurecimento das penas, como defende o CDS?
Na perspectiva do Governo não é esse o caminho. As penas existentes são as adequadas para responder ao problema.

É comum as vítimas contarem tudo o que lhes aconteceu quando apresentam queixa na esquadra mas mais tarde eximirem-se a fazê-lo perante magistrados judiciais. E a lei só permite validar estas declarações iniciais para efeitos de julgamento com o consentimento do arguido. Não será preciso alterar esta disposição legal, que também se aplica às violações?
Estão a ser estudadas medidas para que o registo inicial dessa queixa seja mais completo e possa passar a ser usado [em tribunal].

Outro problema é a retirada de pulseiras electrónicas a condenados por violência doméstica por os juízes terem fundamentado mal a sua aplicação.
A lei tem potencialidades para resolver o problema. A formação dos magistrados neste tema é muito importante.

Surpreendeu-a a dimensão que ganhou o caso do juiz Neto de Moura?
Resulta da crescente consciencialização da sociedade portuguesa em relação a este crime e da menor tolerância relativamente a discursos passados, antigos. Estamos a assistir a maior escrutínio das decisões e a uma sociedade que evoluiu, o que é positivo. Mas também sabemos que ainda há trabalho a fazer, por exemplo na questão da violência no namoro e na forma como nas gerações mais jovens ainda persistem práticas que já podiam estar ultrapassadas.

Se fosse vítima de violência doméstica sentir-se-ia segura caso o seu processo fosse parar às mãos do juiz Neto de Moura?
O facto de termos criado uma equipa para analisar os casos que correram mal deve servir para corrigir, mas não para desvalorizar toda a rede de acompanhamento. Quando uma mulher apresenta queixa deve sentir-se segura, porque na generalidade dos casos corre bem. E a confiança no sistema é fundamental para que as mulheres se queixem e saiam da situação em que vivem. No resto do debate não vou entrar. Nos últimos anos aumentámos o orçamento da rede de protecção das mulheres, que era cerca de quatro milhões e agora passou a cerca de seis. Aumentámos o número de casas-abrigo e de formas de atendimento. Houve 11 mil atendimentos no ano de 2017 e isso significa que estas mulheres tiveram uma resposta.

Escolas e unidades de saúde têm um papel fundamental na descoberta de casos de violência doméstica. Como tirar mais partido disso?
Na área da saúde há questões que foram identificadas, como nem sempre ser usado o questionário que serve de instrumento de sinalização de casos. O Ministério da Saúde está a trabalhar com as administrações regionais de saúde para melhorar isso. A circulação de informação entre os vários sectores, como saúde e educação, tem de funcionar.

Como vê o facto de haver manuais escolares a perpetuar estereótipos de género?
Lançámos uma estratégia de educação para a cidadania que produz conteúdos e recomendações às escolas. Relativamente aos manuais existem mecanismos de acompanhamento. Que reagem, aliás, alguns com bastante peso noticioso, a esses casos, que têm vindo a diminuir.

O Estado tem meios de fiscalizar a paridade salarial entre homens e mulheres que foi aprovada recentemente? Há multas previstas?
Tem. E no mundo de hoje fica muito difícil justificar essa diferença. E a vergonha social tem efeitos muito poderosos. Expor a desigualdade é um instrumento de correcção muito forte. As coimas já estavam previstas no Código do Trabalho.

Vários estudos comprovam a desigualdade na partilha de tarefas domésticas. O que pode o Estado fazer nesse capítulo?
Entrar na casa de cada um para transformar hábitos é das coisas mais difíceis de fazer. Mudando as dimensões das licenças de parentalidade sabemos que estamos a transformar um conjunto de práticas. Mas é um trabalho lento, que passa por cada família.

A extensão dos horários das creches e o aumento dos apoios aos idosos serão caminhos a seguir?
O programa de conciliação da vida profissional e familiar tem essas dimensões. A questão é quem assume o comando à hora a que acabam esses apoios sociais. Não é expectável que as creches continuem abertas a partir de determinada hora. Nesse programa de conciliação temos já inscritas 14 organizações da administração central, 13 câmaras municipais e 16 empresas privadas e oito públicas, que aderiram a pactos destinados a estabelecer respostas no capítulo da conciliação, nomeadamente em termos de horários de trabalho. 

Há países em que já se discute a discriminação laboral dos trabalhadores sem filhos, aos quais são impostos horários mais exigentes. Isso é um problema em Portugal?
Não podemos olhar para as soluções que vamos encontrando como criadoras de novos problemas. Não creio que tenhamos de olhar para todas as medidas destinadas a promover a igualdade como potenciadoras de novas desigualdades, nem que estejamos perante esse tipo de problema neste momento. Esse receio já foi invocado relativamente às quotas e a todos os outros instrumentos de discriminação positiva que a sociedade já construiu.

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