Consulta pública obriga a baixar metas de redução de bovinos até 2050
Consulta pública aconselhou a ajustamentos nos cenários iniciais do Roteiro para a Neutralidade Carbónica 2050. Redução de efectivo bovino será agora entre 20 e 30%, mas haverá mais tecnologias de mitigação e mais pastagens. Uma série especial que se prolonga até domingo sobre o impacto dos bovinos na nossa vida, desde a criação até à mesa
A descarbonização da economia portuguesa até 2050 já não cortará até metade do efectivo de bovinos. A consulta pública do Roteiro para a Neutralidade Carbónica 2050, que terminou no início deste mês de Março, resultou na necessidade de “introduzir alguns ajustamentos”, disse ao PÚBLICO Francisco Avillez, coordenador da equipa técnica da agricultura, apontando-se agora para uma redução de 20 a 30%, entre 2020 e 2050, em vez dos polémicos 25 a 50%.
Para compensar esta alteração, adianta, terão de ser adoptadas mais tecnologias e práticas mitigadoras das emissões das explorações. Confirma que estas passarão por uma alimentação mais digestiva para os animais, por uma melhor gestão dos estrumes e urinas e também por uma maior expansão das pastagens permanentes de produção extensiva, como são as pastagens biodiversas, pela sua capacidade de sequestro de gases com efeito de estufa (GEE). Os novos valores serão agora definidos.
O Instituto Nacional de Estatística estima que o continente e os Açores tinham em 2017 um total de 1,6 milhões de efectivos bovinos, vendo-se o peso da produção de carne para consumo: mais de 1,2 milhões eram fêmeas (a que normalmente chamamos vacas, sendo vitelas, novilhas, reprodutoras, leiteiras e outras); destas apenas 239 mil eram leiteiras.
“Se desagregarmos as emissões do sector agrícola, 83% são do sector animal e, destes, 70% são bovinos, pelo que qualquer esforço de descarbonização passa necessariamente pela pecuária e particularmente pelos bovinos de leite e carne”, reconhece Francisco Avillez.
Tiago Domingos, investigador do Instituto Superior Técnico da área de energia e ambiente e presidente do centro Maretec, até acredita que as pastagens semeadas podem chegar ao milhão de hectares, cerca de 10% do país, abrangendo o Ribatejo, Beira Baixa e Alentejo, “onde estão muitas zonas de montado de sobreiro e azinheira”. É o que lhe disse a experiência com pastagens biodiversas em Portugal em que esteve envolvido vários anos através do Terraprima.
PAC terá a resposta
Qualquer que seja a redução, esta far-se-á no quadro de uma concorrência desigual, com “uma maior liberalização do comércio no mundo, onde a carne de vaca vai chegar a Portugal a preços mais competitivos, em muitos casos em relação aquela que conseguimos produzir”, avisou o ministro do Ambiente, João Pedro Matos Fernandes, quando apresentou o Roteiro, em Dezembro passado. Mas este é um assunto que se escusa a retomar.
Outro “elemento de pressão” concreto que condicionará o sector e tido em conta nos cenários da descarbonização, será “quase inevitavelmente, a partir de 2030-40, o desmantelamento das protecções aduaneiras, especificamente a 25% dos bovinos e 20% dos frangos” e o que se segue será uma questão de grau. Desde uma reorientação dos apoios europeus da pecuária para os cereais até “tornar a agricultura mais competitiva e sustentável, transferindo os apoios à produção para apoios ambientais e climáticos”.
“Se a vaca a consumir no futuro não for produzida em Portugal, virá do Brasil e da Argentina, onde o aumento da produção de carne é extremamente prejudicial porque a expansão é feita à custa da Amazónia e do Cerrado”, adianta Tiago Domingos. “Se o nosso consumo não mudar, a carne terá de ser produzida em outros países e aí sim os impactos serão maiores: é onde há desflorestação e menor eficiência. Será hipócrita”.
A expansão das pastagens duradouras previstas no Roteiro vai ao encontro do projecto Terraprima. “Nos últimos 10 anos, trabalhámos nisto, reconhecido pela UE como a melhor solução para o clima”. Foram 50 mil hectares de pastagens semeadas envolvendo mais de mil agricultores, no Alentejo, Ribatejo, Beira Baixa, zonas de solo pobre em matéria orgânica e com potencial para a aumentar, financiados pelo Fundo Ambiental, entretanto interrompidos. Na impossibilidade de reproduzir as condições únicas dos pastos dos Açores, que garantem alimento o ano inteiro, defende que “as pastagens semeadas biodiversas permitem alimentar no Inverno e no Verão” e são ricas em biodiversidade “porque existe pastoreio”.
Debate internacional
O debate internacional à volta do impacto da produção pecuária leva mais de uma década, começou em 2006, quando a FAO - Agência das Nações Unidas para a Alimentação alertou para o prejuízo ambiental da produção pecuária no mundo e para a necessidade de mudança da dieta alimentar.
Considera, por isso, que as emissões de metano (a fermentação entérica, na linguagem mais técnica) são, de per si, “o problema menor”, mas já não o são enquanto um dos três “impactos da pressão do crescimento económico”, que enumera. Os outros são o abate das florestas e a pressão sobre os recursos hídricos. “A humanidade está confrontada com um problema muito mais difícil de resolver do que se pode imaginar”, desabafa. “É mais preocupante o impacto da necessidade de alimentar uma população crescente num mundo em que as pessoas estão a ter mais prosperidade económica, estão a viver melhor. Somos 7,6 mil milhões de pessoas agora e seremos 9,2 mil milhões em 2050. Como vamos alimentar todas estas pessoas? Esse objectivo tem impactos ambientais extremamente consideráveis”.
Lembra que no ano 2000, cada uma das 6,1 mil milhões de pessoas do planeta tinha 0,25 hectares de terra para se alimentar, enquanto as projecções de 9,5 mil milhões de pessoas para 2050 reduzirão para 0,15 hectares per capita. “É um problema real”, ao qual nem a agricultura portuguesa escapará.
Título alterado às 17h00 de 8 de Março de 2019 e especificação em 13 de Março de 2019 dos dados estatísticos de bovinos