Ana Gomes pede investigação a “esquema de dumping fiscal” em Portugal
Eurodeputada do PS escreve à Comissão Europeia a denunciar “ficção” do regime dos residentes não-habituais, já contestado pela Finlândia e pela Suécia.
A eurodeputada socialista Ana Gomes escreveu uma carta à Comissão Europeia a pedir uma investigação imediata ao regime português dos Residentes Não-Habituais (RNH), a que chama um “esquema de dumping fiscal” pelas desigualdades criadas entre cidadãos europeus e pelas distorções que gera no mercado único.
Gomes considera que o regime português viola o Tratado de Lisboa e a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia ao permitir que os contribuintes com este estatuto, em contraste com a generalidade dos cidadãos portugueses e dos seus países de origem, beneficiem de um IRS especial de 20% ou mesmo de 0% independentemente do seu nível de rendimentos, se tiverem mudado a residência para Portugal e aqui permaneçam durante 183 dias por ano.
Para a eurodeputada, o regime põe em causa o Artigo 4.º do Tratado da UE, onde se diz que os Estados-Membros se abstêm de “qualquer medida susceptível de pôr em perigo a realização dos objectivos” da União Europeia.
O problema já foi levantado pela Finlândia e pela Suécia, que acusam Portugal de fazer concorrência fiscal desleal, e arrisca-se agora a ganhar uma dimensão mais vasta se a Comissão Europeia der seguimento à queixa e confrontar Portugal.
A missiva, de 5 de Março, foi enviada para três comissários europeus e contém informações estatísticas que, segundo a eurodeputada, mostram como o regime não é mais do que uma “ficção” face aos pressupostos políticos que Portugal invocou para o criar em 2009. Itália e o Reino Unido, prestes a abandonar a União, são outros países com regimes fiscais deste tipo e, na carta, Ana Gomes, sugere que Bruxelas avalie não só o impacto das práticas portuguesas mas também a de outros Estados-membros.
Ao executivo de António Costa, a eurodeputada já tinha pedido que pusesse fim a este regime; o ministro e presidente do Eurogrupo, Mário Centeno, não respondeu a uma outra carta e, agora, a eurodeputada vira-se para a Comissão Europeia, a quem pede que mostre ao Governo português como este é um regime injusto que, insiste, promove a desigualdade fiscal e viola as “normas relativas à concorrência no mercado único da União Europeia e na zona euro”.
O RNH dirige-se a dois grandes universos de cidadãos que, estando a viver no estrangeiro nos cinco anos anteriores, mudem a residência para Portugal: pensionistas de outros países (ou portugueses) e trabalhadores de outros territórios desde que exerçam uma actividade de “elevado valor acrescentado”, como músicos, actores, engenheiros, arquitectos, dentistas ou investigadores.
Mas os números do regime mostram uma outra realidade: em 27 mil beneficiários, só há dois mil “cérebros”, dos quais metade são quadros superiores de empresas. Isto é, mais de 25 mil beneficiários (92%) aparecem listados como cidadãos “sem actividade de elevado valor acrescentado”. Números que o Governo opta por continuar sem explicar ao PÚBLICO o que significam e como se encaixam, no universo total de beneficiários, os cerca de nove mil pensionistas, alguns dos quais conseguem ficar isentos de IRS quer em Portugal, quer no país de origem.
O regime, lembra Ana Gomes, “foi sempre publicitado como um motor de atracção da competitividade e do capital humano de excelência, enquanto simultaneamente se apelava a pensionistas estrangeiros para que viessem para Portugal viver das suas reformas”. Mas o resultado é outro, alega, lembrando a esmagadora maioria de beneficiários sem “elevado valor acrescentado” e que, no leque dos que aí se enquadram, só há, por exemplo, 15 arquitectos, 48 professores universitários ou um cirurgião. “Parece que o grande objectivo do programa, de investimento no capital humano qualificado, não é mais do que ficção!”, insurge-se, afirmando que o estatuto torna Portugal “num paraíso fiscal para pensionistas estrangeiros e para delinquentes fiscais nacionais, que aproveitam o esquema de isenções fiscais independentemente de estarem, ou não, a residir em Portugal”.
O Governo de António Costa demorou-se a tornar públicas informações estatísticas que permitem fazer o escrutínio público sobre o RNH. Deixou o BE sem resposta durante meses em relação ao teor de uma auditoria realizada pela Inspecção-Geral de Finanças que detectou falhas no controlo dos beneficiários e só divulgou dados estatísticos depois de o semanário Expresso recorrer à Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos (CADA).
Algumas informações foram entretanto tornadas públicas numa resposta parlamentar ao BE e é a partir delas que Ana Gomes expõe alguns dados à Comissão Europeia, a quem recorda que este regime em Portugal corre em paralelo com o dos vistos gold.
Bruxelas fica agora a conhecer algumas luzes sobre distribuição dos principais beneficiários por naturalidade: França (6556), Reino Unido (2980), Itália (2900), seguindo-se o Brasil (2444), a Suécia (2337) e Portugal (1889 – portugueses que viviam no estrangeiro e que pediram o estatuto quando regressaram).
Para a eurodeputada, o que está em causa é um “verdadeiro paraíso fiscal para pensionistas da União Europeia, mas também para alguns portugueses que estão a beneficiar do programa, enquanto a maioria dos cidadãos e pequenas empresas portuguesas continuam a ser esmagados por níveis confiscatórios de carga fiscal.”
As críticas prosseguem: “Tal qual como o esquema dos vistos gold, este tipo de programas é responsável pela criação de uma bolha especulativa no sector imobiliário que está a impedir, por exemplo, estudantes de arrendarem casas no centro de Lisboa ou do Porto, inflacionando os preços do imobiliário para máximos nunca antes vistos”.
“Tudo isto é um escândalo, uma grosseira injustiça para com os contribuintes portugueses e uma deslealdade para com outros Estados-Membros da União”, afirma, numa referência implícita às críticas da Suécia ou da Finlândia — este parceiro europeu já rasgou um acordo fiscal com Portugal e decidiu tributar unilateralmente os pensionistas que beneficiam do regime português.
A carta seguiu para três elementos da Comissão Juncker, o comissário com a pasta do euro e da fiscalidade, Pierre Moscovici, a comissária da Concorrência, Margrethe Vestager (rosto da investigação à Zona Franca da Madeira, aos esquemas fiscais da Apple, Starbucks, Fiat e Nike), e à comissária da Justiça, Vera Jourová (voz do dossier dos vistos gold).