A história do hip-hop em Portugal ao vivo
De General D, Boss AC e Carlão até Piruka ou ProfJam, passando por Sam The Kid, Dealema ou Capícua. Esta sexta-feira, no Altice Arena, vai ser contada uma das histórias possíveis da cultura hip-hop em Portugal.
Vai ser uma espécie de aula prática. Uma celebração. O contar de uma história que em larga medida, como acontece quase sempre em Portugal quando se fala em cultura popular, continua por avaliar com justeza.
É o espectáculo A História do Hip-Hop Tuga, que decorre esta sexta-feira no Altice Arena, em Lisboa, convocando quatro dos DJ mais exemplares do género (Bomberjack, Cruzfader, Kronic e Nel’ Assassin), e mais de 30 nomes (General D, Boss AC, Black Company, Carlão, Micro, Sam The Kid, Capicua, Chullage, Dealema, NBC, Dillaz, Grognation, Piruka, ProfJam, Tekilla, Vado Mas Ki Ás, Keso, Piruka, entre outros) que representam as várias facetas e gerações do hip-hop que foi sendo feito em Portugal.
Faltam algumas figuras essenciais, como sempre nestes casos, mas na teoria vai ser possível vislumbrar que o surgir do hip-hop em Portugal nos anos 1990 constituiu um dos mais fascinantes fenómenos do contexto pós-colonial português. Não só pela dimensão artística, mas também pela forma como funcionou como instrumento de construção efectiva do espaço cultural, das relações e representações sociais que emergiam dessa nova condição histórica.
Desde a alvorada dos anos 1980 que a cultura hip-hop, e algumas das suas extensões, como o rap, o breakdance ou o graffiti, eram conhecidas por algumas franjas, mas a presença mediática é praticamente nula nessa década. É um período em que as hipóteses de formação de redutos culturais, emergentes em zonas limítrofes de Lisboa, como Miratejo, eram de imediato apelidadas de “marginais”.
Projectos como One Equal, African Power ou Rebel Gang, todos aglutinados à volta do colectivo B Boys Boxers, do qual faziam parte nomes que iriam dar que falar nos anos vindouros, como General D ou os Líderes da Nova Mensagem, dão os primeiros passos no final dos anos 1980. Nesses anos General D foi o principal rosto do rap luso.
Era o dinamizador e o activista, com um discurso de consciência social e política que Portugal não estava habituado a ouvir. As suas letras eram virulentas e directas. Ao contrário do que sucedera com a geração dos seus pais, discretos nos seus posicionamentos, os novos agentes do rap queriam ter voz, exigindo direitos políticos, económicos e sociais.
Essa maior solidificação do fenómeno haveria de abrir espaço para o irromper dos Da Weasel de Carlão e para a aposta da editora Sony numa colectânea que desse voz a vários projectos então existentes. É assim que a compilação Rapública (1994) é concretizada, dando a conhecer a um público transversal os Black Company ou Boss AC, ao mesmo tempo que o género dá sinais de vida no Porto, através dos Mind Da Gap (Ace, Presto, DJ C-Real), abrindo caminho para o novo milénio.
É a altura em que a cultura hip-hop em Portugal alarga a esfera de influência, o mercado, os actores e admiradores. Os anos 2000 não são apenas a confirmação do trabalho desenvolvido antes. É uma altura de novos actores, alguns já com trabalho feito no final dos anos 1990, como os Micro, Chullage, Valete, Dealema, Matozoo, entre outros, ou DJ Bomberjack e DJ Cruzfader, pioneiros das chamadas “mixtapes”. Entre eles está também Samuel Mira (Sam The Kid), que em 1998 grava Entre(tanto), o seu primeiro trabalho de produção caseira e independente, com as participações de Xeg, Sanrise ou NBC, numa maneira de operar que iria fazer escola nos anos que se seguiriam.
Outros nomes que se destacam são os de Chullage, que lança o primeiro álbum, Represálias, em 2000, numa linha bastante intervencionista, e Valete. Quase todas as estrofes de álbuns seus como Educação Visual (2003) são recriações de palavras dilacerantes, em que o protagonismo é dado à segregação social e aos problemas associados. Nas suas palavras, e de outros como Xeg, os mundos urbanos e suburbanos assumem-se como pilares principais da construção da palavra. Essa maior abordagem temática sente-se, por exemplo, também nas palavras de Nerve ou dos Dealema, do Porto, que são capazes de retratar os esquemas que minam quase todos os níveis da sociedade.
Mas talvez quem tenha oferecido uma visão mais sombria da sociedade tenha sido Allen Halloween. Algo visível no seu som, distópico e escuro, nas vocalizações poderosas e nas palavras. É também em algumas destas dicotomias que Ana Matos Fernandes, ou seja, Capícua, se inspira. Natural do Porto começa a dar nas vistas a partir de 2004, embora tenha editado apenas o seu primeiro álbum a solo em nome próprio em 2012, transformando-se anos depois, quando edita o segundo álbum, Sereia Louca, num dos poucos casos de sucesso no feminino desta história, trazendo novos motivos e temas para o palco.
Em 2004 e anos seguintes voltam a editar-se inúmeros álbuns (Micro, Conjunto Ngonguenha, DJ Kronic, NGA, Ofício, Xeg, Tekilla, Mundo Complexo, Sagas, entre outros), para além de compilações e mixtapes. O fenómeno dissemina-se por completo, não conhecendo fronteiras etárias, sociais e culturais. As temáticas, atitudes e as ideias multiplicam-se, a que não é alheio o pulverizar de expressões globais.
Ao mesmo tempo vão surgindo novas gerações que se movimentam entre realidades locais e globais, entre comércio e fidelidade ética, entre desejar ser independente e entrar nos circuitos industriais. Nomes como Regula, ou, noutra perspectiva, Piruka ou NGA, foram encontrando novas formas de operar (ao nível da criação, difusão e distribuição) graças às tecnologias de baixo custo, à Internet e às redes sociais.
Hoje o hip-hop em Portugal é uma realidade heterogénea. Enquanto produto artístico muitos nomes afirmaram-se nos últimos tempos (de Slow J a Keso, dos Força Suprema ao colectivo Monster Jinx, de Mike El Nite a ProfJam, dos Grognation aos Wet Bed Gang), sem que seja possível afirmar um traço comum. Por um lado, a cultura hip-hop global tornou-se hegemónica, com os estilhaços desse novo posicionamento a chegarem também a Portugal, naquilo que pode ser lido como um traço positivo. Mas existe sempre o reverso. Aquilo que antes se criticava no rock é agora também perceptível na cultura hip-hop: algum aburguesamento, autodeslumbramento e afastamento da realidade. Uma história nunca é linear. Afinal, é bem possível que, esta sexta-feira, em vez de uma narrativa, tenhamos várias a cruzarem-se no palco do Altice Arena.